“Descartes já o tinha percebido com uma admirável clareza: a liberdade da indiferença é o grau mais baixo da liberdade.”
Gabriel Marcel (1889-1973)
Gabriel Marcel (1889-1973)
Tem família mas a família não a tem.
Há um sentimento de ausência que a veste, a ela, que às vezes alheia
percorre a calçada procurando nesse vai-e-vem fantasmas de acolhimento. É
uma eterna peregrinação diária sem fadigas, indiferente às forças que
não tem, no ímpeto com que caminha enterra os gestos cansados de mais um
dia obrigado à cegarrega do fado.
Vestida de absurdo, quando o vento sopra, deixa ver as pernas
acinzentadas pelo frio que se faz sentir, calçada de pano ou de umas
botas onde os pés se encolhem, leva no casaco arrumado no braço o pão
embrulhado que a alimenta, temperado de ar.
Dizem que às vezes compra um sumo, uma vela, uma caixa de fósforos.
Dizem que recebe uma pensão.
Sabe-se que dorme em casas vazias, servidas de veredas e que é ela que
acorda o dia para a claridade para que a não vejam sair do leito e do
agasalho que não tem. Lava-se nas águas das fontes ou torneiras, a horas
escusas, sem intimidades, surpreendida pelos que ao lusco-fusco fazem
caminhadas pela saúde.
Desconfio que nunca teve infância pelo modo como suporta o rigor do tempo e o pesar da vida.
Dá-me bom dia ou boa tarde fugidios e não consigo ver-lhe os olhos
magoados do sol ou da brisa fria, no rosto que baixa e ausenta, sofrido,
para mim dramático.
Incomoda-me vê-la passar, o passo já mais pesado, a saia – quase sempre a
mesma – mais torcida na cintura cingindo a magreza do corpo. Anos e
anos…Todos a conhecem.
Esta é a Indiferença figurada no traço humano!
No final do ano passado foi feita uma “contagem” de sem-abrigos e o
resultado deu-nos um número, decerto não exacto:4.420, sendo que 852
seriam em Lisboa. E estes desabrigados anónimos por todos os concelhos,
quem os conta?
Não se pode admitir a indiferença, o egoísmo, quando há meios para se
recuperar o que não é um modo de vida normal. Há culpados e, se calhar,
todos temos um pouco de culpa – pelo silêncio!
Não se vive há quarenta anos em democracia, com direitos adquiridos,
enquanto soubermos que há gente que não tem acesso a um mínimo de
dignidade.
Se não há as cantinas “take-away” que o actual ministro da solidariedade
tanto apregoou, que os meios do Estado através dos devidos serviços,
observando in loco a realidade, possam encaminhar, ajudar estas pessoas.
É para isso que os contribuintes descontam.
Para hipocrisia basta que tenhamos um vice-ministro que diga que os
portugueses que perderam o RSI tinham mais de cem mil euros no banco…
E se por acaso este pequeno texto provocar comichão, nada como o tempo da Quaresma para exorcizar línguas!
Estamos no século XXI não na Idade Média.
Maria Teresa Góis
in:Diário Notícias da Madeira, 06-04-2014
http://www.dnoticias.pt/impressa/diario/opiniao/440368-uma-maria-que-nao-vai-com-as-outras%E2%80%A6
Muito bom, Tuka! Quantas assim não há... E todos devemos ter um pouco de culpa realmente – pelo silêncio!
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