...."Leiam um jornal. O jornal condensa todo o drama.Pelo jornal reconstituir-se-á mais tarde a nossa época inteira.
Nada mais doloroso do que este noticiário da Vida, que enche todos os dias as colunas dos periódicos. Esta folha de papel amachucada, cheirando a tinta de impressão, traz consigo saburras de desgraça, risos, lodos, gritos, a alma humana estateladsa e a sangrar. O jornal é um drama bem mais vivo e doloroso, do que os que se arrastam para o tablado. Desde a última coluna dos anúncios até ao primeiro artigo, toda ela grita misérias, ambições, sonhos, raivas e torturas. É a alma humana contada numa forma gelada e banal, - como quem diz a tragédia balbuciada.
O homem indiferente lê e passa para a luta, bem cheio da sua própria desgraça, para se importar com a desgraça dos outros. Egoísta, agarrado ao sonho, mal entrevê, através da tinta negra, quantos gritos, quanta aflição contém aquela folha ainda húmida que amarrota no bolso.
É que a vida moderna é exasperada e feroz. Para a frente!para a frente!Parar é morrer;parar é a gente sentir-se calcado pelos que vêm atrás, ofegantes,de unhas afiadas, prontos a despedaçar, contanto que cheguem mais depressa aos seus fins. É uma correria de seres borrados de ambição, agatanhando-se, metendo os ombros, com as mãos suadas, cerrados os dentes, prestes a tudo, até a matar, desde que consigam deitar os gadanhos ao que desejam. O céu agora é a terra, rapaziada!...
Neste áspero combate da vida é preciso dormir-se, não como os antigos cavaleiros, de armadura vestida, mas, o que é pior, com cérebro afiado-e, sobretudo, não ter coração. Endurecê-lo, emp+ederni-lo, torná-lo mais seco que a secura, e mais duro que o aço. Parar, para ouvir gritos dos que tombam, é ser esmagado; ter piedade do sofrimento alheio, dos pobres, dos fracos, dos sonhadores, é arriscar-se a gente a ficar sob os pés dos que caminham e calcam furiosamente."....
in: "O Padre", Raul Brandão
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