O papiro de um soldado romano enviado à família foi encontrado no final
do século XIX, ficou por decifrar durante mais de 100 anos por estar em
mau estado. Aurelius Polion tinha saudades de casa e estava à espera de
receber notícias dos familiares
A frase faz parte de uma mensagem com 18 séculos: “Rezo noite e dia
para que estejam de boa saúde, e presto obediência contínua aos deuses
em vosso nome.” Aurelius Polion, cidadão romano, legionário, escreveu
estas palavras para a sua família por volta do ano 214 depois de Cristo
(d.C.). O papiro foi encontrado no final do século XIX, mas por estar
tão degradado só recentemente é que foi decifrado do grego antigo e
traduzido para inglês. Através do seu estudo, publicado no Bulletin of the American Society of Papyrologists, ficamos a conhecer as saudades de um filho e de um irmão, que pede notícias de casa.
Cerca de 4000
quilómetros separam a Panónia Inferior, a província romana onde Aurelius
Polion estava colocado (hoje na região de Budapeste, na Hungria), e a
cidade de Tebtunis, a 130 quilómetros a sudoeste do Cairo, no Egipto,
onde a família do legionário vivia. Foi nos vestígios desta cidade
egípcia, dominada por Roma, que os egiptólogos britânicos Bernard
Grenfell e Arthur Hunt encontraram, no final do século XIX, este e
outros papiros.
“Não sei quantas cartas de soldados romanos
sobreviveram ao todo”, diz ao PÚBLICO Grant Adamson, que em 2011
participou no programa de Verão da Sociedade Americana de
Papirologistas, onde decifrou este papiro, guardado na Biblioteca de
Bancroft, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, Estados Unidos.
Segundo o investigador, que é da Universidade de Rice, em Houston,
Texas, terá havido muitas cartas, mas poucas terão sobrevivido. Esta
carta só sobreviveu porque no Egipto “o clima é apropriado para a sua
preservação”.
A carta dirige-se ao irmão, à irmã e à mãe. “Não
paro de vos escrever, mas vocês não se lembram de mim. Mas eu faço a
minha parte de vos escrever e não paro de vos ter presentes (na minha
mente) e de vos trazer no coração. Mas vocês nunca escreveram de volta,
falando da vossa saúde, de como estão. Estou preocupado convosco porque,
apesar de receberem frequentemente cartas minhas, nunca escrevem de
volta para que saiba de vocês.”
E continua a exigir notícias da
família: “Enviei-vos seis cartas. No momento em que vocês (?) me tiverem
na mente, deverei obter uma licença do (comando) consular, e irei ter
convosco para que saibam que sou vosso irmão. Porque não exijo (?) nada
de vocês para o exército, mas culpo-vos porque apesar de vos escrever,
nenhum de vocês (?) … tem consideração. Vejam, o vosso (?) vizinho … Sou
o vosso irmão.”
Grant Adamson defende que o legionário terá
nascido como egípcio mas que, entretanto, adquiriu cidadania romana. A
idade do documento foi inferida pelo estilo da escrita, pelo facto de o
soldado ser romano – em 212 d.C. foi dada cidadania romana a muita gente
–, e pela referência ao “comando consular”, a região da Panónia
Inferior só passou a ter governo consular depois de 214 d.C.
Aurelius
Polion terá sido, assim, voluntário do exército romano, pertenceu à
Legio II Adiutrix, ou segunda legião auxiliar, numa altura em que o
serviço militar era de 20 anos, mas num tempo calmo, sem guerras. “É
precisamente por as coisas estarem pacíficas que ele tem tempo para
escrever todas estas cartas”, diz Grant Adamson. “Uma das coisas que não
esperava encontrar foi a referência à obtenção da licença militar. Que
envolve um soldado ter de fazer um pedido [de licença], que depois seria
dada ou negada pelo comandante.”
O soldado falaria egípcio e
grego com a família – Tebtunis esteve sob ocupação grega antes de passar
a pertencer a Roma –, e latim na legião. A carta, no entanto, foi
escrita em grego. “O egípcio era falado mas não era escrito pela maioria
dos egípcios, e a sua família quase de certeza que não saberia muito
latim”, explica o investigador, acrescentando que na altura a literacia
da população era muito fraca.
Aurelius Polion terá pertencido a
uma família de classe baixa com alguns privilégios, mas não escreveria
bem: “Ele até escrevia algumas letras do alfabeto latino em vez do
grego, e usava alguma pontuação latina.”
O documento terá viajado de mão em mão até chegar a Tebtunis. Lido hoje,
é fácil sentir empatia pelos sentimentos que transparecem. “Reflecte as
emoções de um soldado no mundo antigo”, diz April DeConick, orientadora
do trabalho de Grant Adamson, citada num comunicado da Universidade de
Rice. “As suas emoções não são diferentes das dos soldados de hoje, que
querem voltar para casa.”
fonte: Público, Nicolau Ferreira, 24/03/2014
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