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sexta-feira, dezembro 19, 2008

NATAL

Estremeci, todos os cinco sentidos estremeceram e, pior do que isso, estremeceu também o meu sexto sentido num espasmo gélido que me deixou queda, hirta. Respirei fundo e logo uma corrente de ar fria percorreu o meu sistema respiratório; nem ousei abrir a boca temendo não voltar a fechá-la!
Abri os olhos - oh impossível - uma luz crua de um fluorescente eléctrico tão à moda feriu-me a visão, aquecendo-a um pouco. Apenas volvi o olhar apercebi-me dos cinzentos cambiantes da paisagem. A noite era cinza escura, a linha do horizonte cinza mescla e o chão era cinza de sombras sobre o branco. Eram cinzentas as formas tapadas das árvores e arbustos que os meus olhos, já mais habituados, ousavam apalpar. Afinal não passava de uma fria noite de Dezembro com paisagem de Natal a preto e branco.
Recuperei do espanto e fui recuperando a vida: senti o cheiro húmido e frio, leve e puro, de um ar estranhamente rarefeito. Conseguia ouvir múrmurios de brisas, adivinhava ventos nas montanhas, colecções de estrelas no céu. Abstive-me a supôr coisa nenhuma sabendo que o que estava a acontecer era fascínio e magia. Decidi esperar e, esperando, fui conhecendo de cor aquelas formas. Um magnetismo me prendia como a calma dos sem destino até que ouvi um som arrastado do além que, de vez, me arrancou ao torpôr.
O que pensei ser um pequeno avião, no céu, sob os meus olhos tomou forma. Disparam a adrenalina e pulsações, de puro medo. Esfrego os olhos e de pouco resulta! A figura de um carro de renas com Pai Natal incluído tomava a forma que eu não acreditava. Dei um passo atrás abrindo terreiro ao porto necessário de aterragem.
Sem travagens nem chios, sem campainhas, sininhos, apercebi-me da imobilidade de um carro em madeira nobre e escura, de uma figura trajando o vermelho da tradição e, vejam bem, quatro alvíssimas renas de olhos negros bafejavam, pesada, cinzentamente.
A figura mexeu-se, com lentidão tropical, desceu do mal aparelhado trenó, sacudiu a cabeça e virou-se, encarando-me. "Shoking" diria Byron! A palavra que me ocorreu foi, vernaculamente, mais complexa se bem que mais usual e corriqueira. Temendo perder a razão decidi-me a olhar, de baixo para cima.
Dois pés grandinhos calçavam sandálias de largas tiras de couro querendo ser, talvez, um novo modelo de descartáveis. As calças, não admira, eram vermelhas como o era o casacão e a T-Shirt que o vestiam. As mãos, enormes, deixaram cair umas luvas imaculadas e surgiam, palmas brancas ao céu, unhas estranhamente rosadas e costas nervosas e negras. Daí, saltou-me o olhar para a dentadura dentifricamente branca e matematicamente correcta como eu jamais vira. O branco dos olhos era branco e tudo o mais era cinzento e castanho, quase negro.
A fotografia da minha estupidez desarmada deve tê-lo divertido e a gargalhada que soltou provocou, em redor, um tremor de terra.
Encomendei-me; morrer é assim!
Fechei os olhos, à espera, mas no espaço de segundos senti conforto, uma temperatura amena soltou-me os sentidos, a voz, devolveu-me inteira à terra dos inteligentes.
A paisagem derretera, cobria-se de côres quentes, verdes e amarelos e o azul do céu era imenso, intenso.
O Pai Natal parecia agora um atleta dos NBA, de T-Shirt e calções, desapertando os sacos de carga e espalhando-a pelo chão. Coisitas de plástico coloridas, pequenos pedaços de panos berrantes, bolas de ping-pong, berlindes, doces, pulseiras e colares eram o seu tesouro.
Esperei qualquer palavra, qualquer gesto, mas só o sorriso me respondia e contagiava. Entrou em mim, encheu-me a alma e compreendi que, ao menos uma vez neste ano acontecia a Justiça. As árvores de Natal ficariam acesas de luzes, de bolas e espiguilhas, anjos e anjinhas e todo aquele calçado polido, novo, determinadamente colocado e ...vazio. Olhei-o uma vez mais, tentei imaginar a barba branca, a farta cabeleira. Impossível!,Gorro algum se apegaria àquela carapinha transpirada, na testa esfíngica.
Já vejo mãozitas àgeis, adejando, olhos brilhantes - hoje de alegria - a acolherem a diferença. Momentos suficientes, bastantes, para esquecer a dôr, a fome, os sem família, a corrida e a fuga, as balas, o medo, a razão para não viver.
Tão pouco e dispensável para uns, tão imensamente necessário para outros
E embrulhando as mil e uma coisitas espalhadas pelo chão na beleza do carinho, da presença, do Amor, assim se fez um Natal negro e quente, humano e inteligente.
Desde este dia decidi que, para mim, nunca mais haveria Natal Branco.








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