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segunda-feira, fevereiro 28, 2011

(ainda) o acordo ortográfico

Letras que morrem e que nascem...
 Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira
automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma
que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes
que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa. Custa-me
despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de
convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e
pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária,
por vezes, gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te
esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como
quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras
já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo?  Custa-me admitir que, de um
dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos
espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao
segundo ato, eu ato os meus sapatos. 
Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras
arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes
e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar
tenho agora a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há
um divórcio, não vale mais a pena criar uma linha entre eles, porque já não
se entendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram
a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e
dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro,
março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser
suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por
outro lado é ótimo que já não tenham. 
As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou
ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo
vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção,
nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade
seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a
atrapalhar.

Manuel Halpern

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