1.Os católicos que forem, hoje, à Missa vão ser intimados a exultar de alegria. É de supor que alguns torçam o nariz e outros esbocem um sorriso amarelo. O amor e a alegria não podem ser comandados do exterior. A mim apetece-me dizer que essa palavra de ordem, seja qual for a sua eficácia, está certa. Se conseguir que um certo cristianismo transformado, durante séculos, em religião da tristeza num “vale de lágrimas”, se converta num laboratório de transfiguração da vida, bendita seja essa ordem. Acabemos de vez com essas caras de sexta-feira pouco santa para poder ressuscitar o quotidiano. Hoje, a tristeza já não vem, sobretudo, do púlpito e do confessionário. A religião laica obriga-nos a consumir, a semana inteira, imagens e noticiários sempre mais deprimentes. Os comentadores de serviço, em nome de uma especial competência analítica, parecem escolhidos para nos dar a certeza que nunca vivemos tão mal e que o futuro será ainda pior. Estamos tristes e há razões para ficarmos desesperados. Por outro lado, habituamo-nos a processos tão mórbidos que, ao erguer muito alto as expectativas e os sonhos – acontece, agora, a propósito de Copenhaga –, desconfiamos que já estão a encenar e a orquestrar a grande desilusão. Os actores da comunicação ficariam muito decepcionados se as coisas corressem bem, porque só a desgraça é uma boa notícia.
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2. Creio que devemos apoiar o Domingo Laetare (Fl 4, 4-7), o Domingo da Alegria, que é sempre breve e ameaçada. Os neo-beatos dirão que é escusado, pois todos os Domingos, celebrações semanais da Páscoa, não são para outra coisa. É verdade, mas Paulo, apesar da insistente exortação da Carta aos Filipenses, que hoje se proclama na Missa, percebeu a situação precária da nossa alegria, sempre misturada com tristezas. Na Carta aos Romanos, escreveu uma das suas melhores peças de cristianíssima retórica, em três actos. Começa por dizer que “a lei do pecado e da morte” – explicando o sentido desta expressão no contexto da sua teologia – já não é quem manda. A nova lei é o Espírito de Cristo que nos faz chamar a Deus, Abba, porque somos seus filhos e herdeiros, co-herdeiros de Cristo e todos irmãos. Com Ele sofremos, com Ele seremos glorificados. Não entra, porém, em delírio místico. Logo a seguir, desce à complexidade da nossa situação real: estamos numa criação em dores de parto. É só em esperança que estamos salvos e a esperança ainda não é a pátria da alegria. É a força da perseverança no combate, filha do Espírito que socorre a nossa fraqueza. Porque perscruta os corações, só Ele sabe rezar, só Ele nos entende a nós e entende a Deus. A finalizar, surge um hino assombroso ao amor que Deus nos tem: se Deus é por nós, quem será contra nós? Criatura nenhuma nos poderá separar do amor de Deus manifestado em Jesus Cristo, nosso Senhor (Rm 8).
3. Mais dia menos dia, a morte virá. A sabedoria deste mundo diz que as separações serão sem retorno. Se assim for, as alegrias que vamos tendo – por mais autênticas que sejam – acabam por servir, apenas, para enganar uma tristeza sem apelo. Creio, pelo contrário, que em Deus há memória e coração para todos, redenção para todos os injustiçados da terra. Mais ainda: acredito que teremos um novo, misterioso e bom contacto com tudo e com todos, mesmo com aqueles que nunca conhecemos e com todos os mundos que nunca vimos. Paulo tem razão: comecemos já a viver e a sonhar com a alegria.
in: Público - o grão de mostarda
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