A “comunidade” literária portuguesa contemporânea que se dedica à Ficção Científica e ao Fantástico (autores, tradutores, editores, divulgadores), apesar da sua (ainda) reduzida dimensão e (ainda) diminuta visibilidade mediática, tem-se mostrado nos últimos dez anos crescentemente interventiva, pelo menos “intramuros”. Os que a observam mais de perto têm sido testemunhas de regulares – ocasionalmente ácidas mas sempre salutares – controvérsias, discussões, polémicas, em torno de temas como a qualidade, quantidade e diversidade das obras, a sustentabilidade destas (para lá das modas) por parte de um mercado e de um público (mais ou menos) conhecedor e consumidor, ou as estratégias das editoras.
Existe, porém, outro tema fundamental que acaba, invariavelmente, por constituir como que o “cenário”, o “pano de fundo” de todos os outros: a existência, ou não, de algo que se poderia designar como uma “tradição” -secular, de preferência – do fantástico em Portugal. Eu afirmo que sim, que existe, e vou mesmo mais longe: não tanto pelo número dos seus livros mas mais pelo impacto e influência daqueles, o fantástico assume-se como o género dominante na (história da) literatura portuguesa – muito mais importante do que categorias ou épocas como o iluminismo, romantismo, realismo, modernismo, neo-realismo, pós-modernismo e outros “ismos”.
Encontrei o ponto de partida para esta conclusão numa das muitas iniciativas desenvolvidas por aquele que, pelo seu trabalho enquanto escritor (ficcionista e ensaísta, investigador e divulgador) e cineasta, é hoje incontestavelmente a maior figura de referência do panorama FC & F português: António de Macedo. Que há dez anos dirigiu uma colecção, denominada “Bibliotheca Phantastica”, na já extinta editora Hugin, onde foram editadas obras de autores actuais: Luísa Marques da Silva, Maria de Menezes, Pedro Lúcio, Sérgio Franclim… e eu próprio – “Visões” constituiu a minha estreia literária e ainda o sétimo e último número daquela colecção. Esta, no entanto, incluiu também dois autores “antigos”: João da Rocha com “Memórias de um Médium”, editado originalmente em 1900 mas provavelmente escrito em 1892; e Teófilo Braga com “Contos Fantásticos”, editado originalmente em 1865 (refira-se que o futuro Presidente da República publicaria, em 1905, mais um livro de ficção, “Frei Gil de Santarém”, sobre a lenda do médico, clérigo e santo português da Idade Média que teria assinado um pacto com o Diabo – um antecessor do “Fausto”). Mais: nas introduções que fez aos sete livros, António de Macedo aproveitou para recordar – para muitos de nós, tratou-se mesmo de revelar – obras e autores que podem integrar perfeitamente, graças aos seus romances, novelas e contos, um “quadro de honra” da FC & F portuguesa do século XX – em especial aquela prévia à da geração que se tornaria mais conhecida na viragem dos anos 80 para os anos 90 do século passado, em grande parte graças à “colecção azul” da Editorial Caminho.
Assim, os títulos e os nomes sucederam-se: “Um Jantar Muito Original”, “A Rosa de Seda” e “Czarkresko” (esta incompleta), de Fernando Pessoa; “A Grande Sombra”, “A Estranha Morte do Professor Antena”, “O Fixador de Instantes” (os três incluídos em “Céu de Fogo”) e “A Confissão de Lúcio”, de Mário de Sá-Carneiro; “O Príncipe com Orelhas de Burro” e “Há Mais Mundos”, de José Régio; “Apenas uma Narrativa”, de António Pedro; “As Aventuras de João Sem Medo”, de José Gomes Ferreira; “AK – A Tese e o Axioma”, “Não lhes Faremos a Vontade” e “A Buzina”, de Romeu de Melo; “Contos do Gin-Tonic”, “Novos Contos do Gin” e “Casos do Direito Galáctico”, de Mário-Henrique Leiria; “O Físico Prodigioso”, de Jorge de Sena. Inevitavelmente, António de Macedo também refere José Saramago; na verdade, como não atribuir um significado muito especial ao facto de o (até agora) único Prémio Nobel da Literatura da língua portuguesa ter várias obras – provavelmente, as suas principais – que se podem (e devem) inserir no género fantástico, nomeadamente “Deste Mundo e do Outro”, “O Ano de 1993”, “Objecto Quase”, “Memorial do Convento”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, “A Jangada de Pedra”, “A Segunda Vida de Francisco de Assis”, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, “Ensaio Sobre a Cegueira”, “Ensaio Sobre a Lucidez” e “Caim”?
O futuro com história
Todavia, é fundamental salientar que o fantástico na literatura portuguesa é muito anterior ao século XX. Aliás, o realizador de “Os Abismos da Meia Noite” e de “Os Emissários de Khalom” mencionou igualmente dois outros livros – duas colectâneas – que podem dar uma primeira perspectiva do que nesse âmbito se fez para trás. Um é a “Antologia do Conto Fantástico Português” (Afrodite, 1967), com “amostras” dos séculos XX e XIX, editada por Fernando Ribeiro de Mello e com introdução de Ernesto de Melo e Castro – que também está presente enquanto autor, juntamente com, entre os outros 34, Pinheiro Chagas, Álvaro do Carvalhal (com “Os Canibais”, que Manoel de Oliveira adaptou para o cinema), Fialho de Almeida, Teixeira Gomes, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Almada Negreiros, Ferreira de Castro, Natália Correia e… Ana Hatherly. Esta, curiosamente, é por sua vez a autora/organizadora do segundo livro mencionado acima: “A Experiência do Prodígio: Bases Teóricas e Antologia de Textos Visuais Portugueses dos Séculos XVII e XVIII” (IN-CM, 1983).Temos pois que, para já, existem “registos” de artistas e de obras identificadas como (podendo ser) inseridas no género fantástico até aos anos de 1600. Contudo, deve-se recuar ao século anterior para encontrar a maior obra do fantástico em língua portuguesa… que é, simultaneamente, a maior obra alguma vez escrita em língua portuguesa, e ainda um triplo símbolo – da literatura nesse idioma, da nação que lhe deu origem e da comunidade intercontinental de países, povos e pessoas fundada a partir daquelas. Exactamente: “Os Lusíadas”, de Luís de Camões. Que dúvidas pode haver quanto à classificação de uma obra que inclui na sua galeria de personagens os principais deuses greco-romanos fazendo uso dos seus poderes sobrenaturais, e um gigante monstruoso, titânico (Adamastor), além de a sua acção culminar numa “Ilha dos Amores” imaginária povoada de ninfas acolhedoras? E não esqueçamos, também de Camões, o “Auto dos Anfitriões”, sobre o mito dos amores entre Júpiter e Alcmena e o consequente nascimento de Hércules.
Porém, o nosso maior poeta não está sozinho, na sua época, no seu gosto pelo irreal. De gerações anteriores vêm: João de Barros com a sua “Crónica do Imperador Clarimundo…”, em que, segundo António José Saraiva e Óscar Lopes (na “História da Literatura Portuguesa”), “o maravilhoso céltico de filtros, gigantes, bruxedos, sonhos premonitórios e outros espantos é cuidadosamente harmonizado com o maravilhoso cristão”; Gil Vicente com vários dos seus “Autos” - “dos Reis Magos”, das Barcas (“do Inferno”, “do Purgatório”, “da Glória”) – e também “Cortes de Júpiter” e “Templo de Apolo”, trabalhos cuja natureza dispensa, suponho, explicações e justificações.
Indo mais longe nas profundezas do tempo, chegamos ao que poderíamos designar como o “pai” de toda a narrativa imaginária portuguesa: “Amadis de Gaula”, escrito provavelmente no século XIII por João de Lobeira, talvez trovador durante os reinados de D. Afonso III e de D. Dinis, e cujo protagonista, cavaleiro apaixonado pela princesa Oriana, “se arriscava a combates assombrosos com gigantes ou monstros” (Saraiva e Lopes, idem).
Avançando agora na cronologia, voltemos ao século XVII para irmos ao encontro do (nas palavras de Fernando Pessoa) “Imperador da Língua Portuguesa”. Qual é a obra mais marcante do Padre António Vieira? A “História do Futuro”, explanação e desenvolvimento apaixonado e pormenorizado do seu conceito de “Quinto Império”, uma era, uma civilização, uma sociedade perfeita por vir, em que, sob a liderança de um rei português ressuscitado (primeiro D. Sebastião, depois D. João IV), o Cristianismo se tornaria, enfim, plenamente dominante em todo o Mundo. Por outras palavras: uma das mais espantosas utopias, literárias e não só, de todos os tempos.
Entrando no século XVIII vamos encontrar António José da Silva, que renova o interesse pela mitologia greco-romana em obras como “Os Encantos de Medeia”, “Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena” (o mesmo tema quase 200 anos depois de Camões), “Labirinto de Creta”, “As Variedades de Proteu” e “Precipício de Faetonte”. Interesse pelo sobrenatural continuado, quase por “inerência”, nos poetas que constituíram a Arcádia Lusitana, em vários textos de Pedro Correia Garção, Manuel de Figueiredo e Domingos dos Reis Quita… e, na “Nova Arcádia”, e inevitavelmente, em muitos momentos de Manuel Maria du Bocage, pré-romântico que queria “fartar (seu) coração de horrores”. Enfim, assinale-se a existência de um livro intitulado “O Que Há de Ser o Mundo no Ano Três Mil”, de P. J. Suppico de Moraes, editado em 1895, mas cujo autor terá sido contemporâneo de… António José da Silva!
Continuando para o século XIX, verificamos que praticamente todos os grandes escritores portugueses oitocentistas experimentaram, uns mais, outros menos, a fantasia… por vezes luminosa, por vezes sombria. Além dos já referidos acima a propósito da “Antologia…” de Fernando Ribeiro de Mello, são de destacar: Almeida Garrett com “O Retrato de Vénus”; Alexandre Herculano com “A Dama Pé-de-Cabra”, conto incluído em “Lendas e Narrativas”; Camilo Castelo Branco com “O Esqueleto”, “Anátema”, “Os Mistérios de Lisboa e dos Seus Crimes” (recentemente adaptado ao cinema por Raul Ruiz), “A Caveira”, “O Livro Negro de Padre Diniz” e “Coisas Espantosas”; e, claro, Eça de Queiroz… O genial José Maria deu-nos, neste âmbito, um “Dicionário de Milagres” que ficou incompleto. Deu-nos contos como: “S. Cristóvão”, “Santo Onofre”, “S. Frei Gil” (outra abordagem à mesma personagem, prévia à do seu amigo Teófilo Braga) - as “Lendas de Santos”; “Frei Genebro”; “Adão e Eva no Paraíso”; “O Defunto”; “O Suave Milagre”. Os folhetins, crónicas, cartas, que constituem “Prosas Bárbaras”. E, obviamente, o romance (ou novela? Ou conto?) “O Mandarim”.
A fantasia como manto
Na respectiva “carta que deveria ter sido um prefácio” para a edição francesa da obra, Eça de Queiroz, ao tentar explicar o que leva um escritor (que se assume como) naturalista a derivar para a fantasia, acaba talvez por exprimir e sintetizar a atitude de outros escritores nacionais, anteriores e posteriores a ele, perante o mesmo dilema – e, porventura, acaba por revelar a genuína essência, mesmo que (aparentemente) “subterrânea”, de toda a literatura portuguesa.
Assim, “O Mandarim” é apresentado como “uma obra bem modesta e que se aparta consideravelmente da corrente moderna da nossa literatura tornada, nestes últimos anos, analista e experimental; (…) pertence ao sonho e não à realidade, (…) é inventada e não observada, e (…) caracteriza fielmente, parece-me, a tendência mais natural, a mais espontânea do espírito português. (…) Ideias justas, exprimidas de uma forma sóbria, não nos interessam por aí além; o que nos encanta são as emoções excessivas traduzidas com um grande fausto plástico de linguagem. (…) O que nos atrai é a fantasia, sob todas as suas formas, desde a canção até à caricatura; também, na arte, havemos sobretudo produzido líricos e satíricos. Mantivemo-nos de olhos levantados para as estrelas. (…) Somos homens de emoção, não de raciocínio. (…) Entretanto, mesmo antes do naturalismo, já alguns jovens espíritos entre nós haviam compreendido que a literatura de um país não poderia manter-se para sempre estrangeira ao mundo real, que trabalhava e sofria à volta dela. (…) Então impusemo-nos bravamente o dever de não mais olhar o céu… mas a rua. (…) Fazemos esta nobre tarefa não por uma inclinação natural da inteligência mas por um sentimento de dever literário… ia quase dizer de dever público. (…) (Mas se o artista português) não puder por vezes fazer uma escapadela para o azul morrerá bem depressa da nostalgia da quimera. Eis porque, mesmo depois do naturalismo, escrevemos ainda contos fantásticos, dos verdadeiros, daqueles onde há fantasmas e onde se reencontra ao canto das páginas o Diabo, o amigo Diabo, esse delicioso terror da nossa infância católica. Assim, ao menos durante todo um pequeno volume, não sentimos mais a incómoda submissão à verdade, a tortura da análise, a impertinente tirania da realidade. Estamos em plena licença estética. (…)” Apenas três anos mais tarde, Eça de Queiroz como que resumiria o seu pensamento sobre esta matéria a uma só frase notável que colocou como subtítulo de “A Relíquia”: “Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia.”
De certo modo, pode-se dizer que, mesmo quando a fantasia não era o género, ou o estilo, maioritário na sua produção literária, vários foram os autores portugueses, em especial os hoje considerados consagrados, que não deixaram de “contribuir para o cânone”, de “picar o ponto”, de “dar o (seu) dízimo” em favor da “causa”. E se equiparássemos a literatura portuguesa ao corpo humano, o fantástico seria a “coluna vertebral” daquela: não é o que ocupa a maior parte da “massa física” mas é o que determina a sua configuração principal, o eixo em volta do qual tudo se relaciona, posiciona e organiza.
Não nos destacámos especialmente no passado por utilizar, e muito menos introduzir, extra-terrestres, super-heróis, vampiros e/ou mutantes, antecipar sociedades futuras e novas tecnologias, descrever viagens inter-planetárias e/ou inter-dimensionais, mas não faltaram autores portugueses que imaginaram e escreveram cenários, situações e personagens fantásticas… nos dois – ou muitos mais – sentidos.
Octávio dos Santos: Jornalista e escritor. Na Ficção Científica & Fantástico é autor de
Visões,
Espíritos das Luzes e o criador e organizador da antologia colectiva de contos de história alternativa
A República Nunca Existiu!; membro da Associação Simetria, desenvolve nesta, desde 2006, o projecto
Simetria Sonora, inventário de FC & F na música popular; foi orador nos colóquios
Fórum Fantástico (2007 e 2010) e
Mensageiros das Estrelas (2010). Venceu em 2009 (no que foi a sua quarta distinção e terceiro triunfo) o Prémio de Jornalismo Sociedade da Informação pelo artigo
Humáquinas (versão inicial saída no PÚBLICO) – A ciência e a tecnologia estão a criar novos corpos. Foi o iniciador de um projecto de reconstituição virtual da Ópera do Tejo e da Lisboa Pré-Terramoto de 1755. Traduziu
Poemas de Alfred Tennyson.
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