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segunda-feira, janeiro 10, 2011

Metade


Que a força do medo que eu tenho,
não me impeça de ver o que anseio.

Que a morte de tudo o que acredito

não me tape os ouvidos e a boca.

Porque metade de mim é o que eu grito,

mas a outra metade é silêncio...

Que a música que eu ouço ao longe,

seja linda, ainda que triste...

Que a mulher que eu amo

seja para sempre amada
mesmo que distante.

Porque metade de mim é partida,

mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo

não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor,
apenas respeitadas,
como a única coisa que resta
a um homem inundado de sentimentos.

Porque metade de mim é o que ouço,

mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora

se transforme na calma e na paz
que eu mereço.

E que essa tensão

que me corrói por dentro
seja um dia recompensada.

Porque metade de mim é o que eu penso,

mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste

e que o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflita em meu rosto,

um doce sorriso,
que me lembro ter dado na infância.

Porque metade de mim

é a lembrança do que fui,
a outra metade eu não sei.

Que não seja preciso

mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito.

E que o teu silêncio

me fale cada vez mais.

Porque metade de mim

é abrigo, mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta,

mesmo que ela não saiba.

E que ninguém a tente complicar

porque é preciso simplicidade
para fazê-la florescer.

Porque metade de mim é platéia

e a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada.


Porque metade de mim é amor,

e a outra metade...
também


Ferreira Gullar 

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