[google6450332ca0b2b225.html

sexta-feira, agosto 26, 2011

quando ela passa


Quando eu me sento à janela
P'los vidros que a neve embaça
Vejo a doce imagem dela
Quando passa... passa... passa...

N'esta escuridão tristonha
Duma travessa sombria
Quando aparece risonha
Brilha mais que a luz do dia.

Quando está noite ceifada
E contemplo imagem sua
Que rompe a treva fechada
Como um reflexo da lua,

Penso ver o seu semblante
Com funda melancolia
Que o lábio embriagante
Não conheceu a alegria

E vejo curvado à dor
Todo o seu primeiro encanto
Comunica-mo o palor¹
As faces, aos olhos pranto.

Todos os dias passava
Por aquela estreita rua
E o palor que m'aterrava
Cada vez mais s'acentua

Um dia já não passou
O outro também já não
A sua ausência cavou
Ferida no meu coração

Na manhã do outro dia
Com o olhar amortecido
Fúnebre cortejo via
E o coração dolorido

Lançou-me em pesar profundo
Lançou-me a mágoa seu véu:
Menos um ser n'este mundo
E mais um anjo no céu.

Depois o carro funério
Esse carro d'amargura
Entrou lá no cemitério
Eis ali a sepultura:

Epitáfio.

Cristãos! Aqui jaz no pó da sepultura
Uma jovem filha da melancolia
O seu viver foi repleto d'amargura
Seu rir foi pranto, dor sua alegria.

Quando eu me sento à janela
P'los vidros que a neve embaça
Julgo ver a doce imagem dela
Que já não passa... não passa...²
 
Fernando Pessoa

NOTA- POEMA ESCRITO EM 1902 QUANDO FERNANDO PESSOA TINHA 14 ANOS

Sem comentários:

Enviar um comentário