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quarta-feira, agosto 17, 2011

A questão do melro

ISAAC FOI BUSCAR UMA GARRAFA DE UÍSQUE e beberam aos mortos. Depois adormeceram no sofá.
De repente, Isaac Dresner acordou e agarrou-se ao vestido de Adele.
- O melro.
- Que é isso do melro?
- Preciso de um uísque. Eu, quando era miúdo, fui apenas uma voz, uma coisa sem corpo debaixo da terra. Esqueci-me da claridade e do mundo e um dia saí daquela caverna e vi a luz do dia, a mesma de que Platão fala. Estava no meio de uma loja de pássaros. De canários que eram pardais pintados de amarelo, desbotados; de bengalins mosqueados, de conures e de cabeças-de-ameixa. E lá fora estavam os restos do mundo, o que sobra da guerra, e em cima do que restava do mundo estava um melro. Dei a mão ao Sr. Vogel e, enquanto olhava para o melro, um soldado veio falar comigo. Já não era um homem, aquele soldado, era mais um despojo do mundo, como um resto de comida. Via-se bem nos olhos dele que lá dentro, dentro dele, estava um vazio aberto com bombas. Sabe, menina Varga, quando um homem vive faz assim: conhece todas as assoalhadas da sua casa. Todas. Vai abrindo porta atrás de porta até somente restar uma. E pensa que já só falta aquela assoalhada. Por isso é que há aqueles cientistas que dizem que basta explicar não sei quê para saber tudo. É a assoalhada deles. Todos nós conhecemos a casa onde habitamos, porta atrás de porta. Quer mais uísque? E, dizia eu, que falta apenas uma porta. Um dia, cheios de coragem, resolvemos abri-la. Só falta uma assoalhada. E então deparamo-nos com algo insólito: a porta não dá para assoalhada nenhuma, a porta dá para a rua. Está a ver? Para a rua! E essa rua está cheia de casas cheias, por sua vez, de assoalhadas. Eu, no outro dia, abri essa porta e fiquei ali parado durante minutos. Foi como quando abri o alçapão e subi para a loja de pássaros e depois para a rua. Aquilo era um novo mundo. Como é que nunca tinha visto aquilo? Um mundo inteiro com árvores e tudo, um lugar onde se voa fora de gaiolas. As minhas pernas começaram a tremer e até cheguei a vomitar. Fechei a porta com força, mas tinha entrado um melro. O mesmo melro que tinha visto em miúdo. Este que você não vê.
- Não vejo.
- Está mesmo aqui - apontava para o ombro esquerdo. - Isto é aquele mundo. Se um dia perceber este pássaro, percebo aquela paisagem. É a maior assoalhada que um homem pode desejar, com campos verdes e árvores. Quando era miúdo aquilo era um mundo devastado, mas no outro dia, quando abri a porta, era um sítio bonito como aquelas gravuras das revistas dos jeovás. A única porta que nos falta abrir no nosso apartamento é a da rua. Lembre-se disso, menina Adele, lembre-se disso. Agora vou contar-lhe como foram as últimas palavras do seu avô. Ou melhor, não foram bem as últimas, mas andaram lá perto.
Afonso Cruz

(in A Boneca de Kokoschka, Quetzal, 2010)

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