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segunda-feira, setembro 28, 2009

"As casas respiram"

As casas respiram. Podemos ouvi-las durante a noite. Têm um movimento soturno e imperceptível sob a secura da noite. Breves ruídos que despistam, o estalar das madeiras, as horas num relógio escondido. Mas não se trata disso. É a respiração das casas que nos suportam, a nós homens, mas possuem uma vida independente, muito densa. Acendi a luz e pus-me a ler. Um capítulo sobre as estátuas gigantes da Ilha da Páscoa que têm uma pedra vermelha sobre a cabeça. Estas pedras vermelhas parecem significar a cor amarela dos cabelos... Merda. Vou fumar para a janela. Passo a noite assim. Até que a madrugada começa a vir do rio. Sobe devagar pelas coisas como uma grande língua fria. Aparecem as casas, o miradoiro, a torre. Vejo então, muito vivo na palidez da madrugada, o bloco junto à igreja, com as suas escadas incompletas que se interrompem uns três metros abaixo da soleira da porta descolorida, entre os umbrais suspensos no espaço. Que é isto? A escada fica a meio percurso entre uma espécie de pátio, com montículos de arbustos rasteiros, e a porta que não dá entrada para sítio nenhum. E ei-lo, a esse último degrau, insólito, parado no ar: pura alucinação. Não era possível chegar à porta trepando pelas escadas. Mas se lá chegássemos, se nela batêssemos um dia inteiro, ninguém a abriria. Ou se a forçássemos, ficaríamos sob os velhos umbrais de pedra, com a vista para o rio, as casas, a cidade. As mesmas coisas que se vêem daqui, da janela. As mesmas que se veriam de qualquer parte. E o mais perturbante é que nem à porta chegaríamos, pois os degraus ficam muito abaixo da soleira. E, reparo, nem às escadas é possível ter acesso. Não se vê como alcançar o pátio de onde arrancam. Só o vento cego traz para ali a poeira invisível, ao longo dos meses, ano após ano, e nascem então esses arbustos inúteis. Os arbustos que parecem sofrer como um pensamento, sob a luz feroz, entre as cruéis linhas de pedra. Não sei nada. Atrevo-me a acender um novo cigarro. E o terror entra silenciosamente na minha vida. in Os Passos em Volta - Escadas e Metafísica, Herberto Helder

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