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terça-feira, agosto 31, 2010

Uma executiva no Céu

4Foi tudo muito rápido. A executiva bem-sucedida sentiu uma pontada no peito, vacilou, cambaleou. Deu um gemido e apagou. Quando voltou a abrir os olhos, viu-se diante de um imenso portal.
Ainda meio zonza, atravessou-o e viu uma miríade de pessoas. Todas vestindo cândidos  camisolões  e  caminhando  despreocupadas. Sem entender bem o que estava a acontecer, a executiva bem-sucedida abordou um dos passantes:
− Enfermeiro, eu preciso voltar com urgência para o meu escritório, porque tenho um meeting importantíssimo. Aliás, acho que fui trazida para cá por engano, porque o meu  convénio médico é classe A, e isto aqui parece-me mais um pronto-socorro. Onde é que nós estamos?
− No céu.
− No céu?…
− Sim.
− Tipo  assim…  o  céu,  CÉU…! Aquele com querubins voando e coisas do gênero?
− Certamente. Aqui todos vivemos em estado de gozo permanente.
Apesar das óbvias evidências (nenhuma poluição, todo mundo sorrindo, ninguém usando  celular),  a  executiva  bem-sucedida  demorou  um pouco a admitir que tinha mesmo batido as botas.
Tentou  então  o plano B: convencer o interlocutor, por meio das infalíveis técnicas  avançadas  de negociação, de que aquela situação era inaceitável.
Porque, ponderou, dali a uma semana ela iria receber o bônus anual, além de estar fortemente cotada para assumir a posição de presidente do conselho de administração da empresa.
E foi aí que o interlocutor sugeriu:
− Talvez seja melhor conversar com Pedro, o encarregado.
− Sim? E como é que eu marco uma audiência? Ele tem secretária?
− Não, não. Basta estalar os dedos e ele aparece.
− Assim? (…)
− Pois diga?
A  executiva  bem-sucedida  quase desaba da nuvem. À sua frente, imponente, segurando uma chave que mais parecia um martelo, estava o próprio Pedro.
Mas,  a executiva tinha feito um curso intensivo de approach para situações inesperadas e reagiu rapidamente:
− Bom dia. Muito prazer. Belas sandálias. Eu sou uma executiva bem-sucedida e…
− Executiva… Que palavra estranha. De que século veio?
− Do 21. O distinto vai dizer-me que não conhece o termo executiva?
− Já ouvi falar. Mas não é do meu tempo.
Foi então que a executiva bem-sucedida teve um insight. A máxima autoridade ali  no  paraíso  aparentava ser um zero à esquerda em modernas técnicas de gestão  empresarial.  Logo,  com  seu  brilhante  currículo tecnocrático, a executiva  poderia  rapidamente  assumir uma posição hierárquica, por assim dizer, celestial ali na organização.
−  Sabe,  meu  caro Pedro. Se me permite, eu gostaria de lhe fazer uma proposta.  Basta  olhar para esse povo todo, só a conversar e a andar à toa, para perceber que aqui no Paraíso há enormes oportunidades para fazer um upgrade na produtividade sistêmica.
− É mesmo?
− Pode  acreditar, porque tenho PHD em reengenharia de processos. Por exemplo, não vejo ninguém usando crachá. Como é que sabem quem é quem aqui, e quem faz o quê?
− Ah, não sabemos.
−  Entendeu  o  meu  ponto de vista?  Sem  controle,  há dispersão. E dispersão gera desmotivação.  Com  o  tempo isto aqui vai acabar numa anarquia. Mas nós  dois  podemos  resolver  tudo isso implementando um simples programa de targets individuais e avaliação de performance.
− Que interessante….
−  É  claro  que,  antes  de tudo, precisaríamos de uma hierarquização e um organograma  funcional,  nada que dinâmicas de grupo e avaliações de perfis psicológicos não consigam resolver.
− !!!…???…!!!…???…!!!
−  Aí,  contrataríamos  uma  consultora  especializada  para  nos ajudar a definir  as  estratégias  operacionais  e  estabeleceríamos  algumas  metas factíveis  de leverage, maximizando, dessa forma, o retorno do investimento do grande accionista… Ele existe, certo?
− Sobre todas as coisas.
− Ótimo.  O  passo  seguinte seria partir para um downsizing progressivo, encontrar  sinergias  high-tech, redigir manuais de procedimento, definir o marketing  mix  e  investir  no desenvolvimento de produtos alternativos de alto  valor  agregado.  O  mercado  telestérico,  por  exemplo,  parece-me extremamente atrativo.
− Incrível!
−  É  óbvio  que,  para conseguir tudo isso, nós dois teremos que nomear um board  de  altíssimo nível. Com um pacote de remuneração atraente, é claro. Coisa  assim  de  salário  anual de  seis  dígitos  e  todos os fringe benefits e mordomias  de  praxe.  Porque,  agora  falando de colega para colega, tenho certeza  de  que vai concordar comigo, Pedro. O desafio que temos pela frente vai resultar num turnaround radical.
− Impressionante!
− Isso significa que podemos partir para a implementação?
− Não. Significa que terá um futuro brilhante, se for trabalhar com o  nosso  concorrente.  Porque a senhora acaba de descrever, exatamente, como funciona o Inferno.

autoria do texto é de Max Gehringer (Exame, ed. 772 de 7 de agosto de 2002)

1 comentário:

  1. Olha que mesmo sem ter conhecido nunca o Inferno, sinto muitas vezes o tal "turnaround radical" à minha volta. Será que já me "passei" sem ter dado conta???

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