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quinta-feira, agosto 06, 2009

as lições de EÇA


Os Maias, de Eça de Queirós, era uma leitura obrigatória no ensino secundário, em tempos idos. Hoje foi substituída pelas regras dos concursos televisivos, por recortes do jornal Expresso e por folhetos ecológicos sobre a melhor maneira de destruir o milho dos outros. Mas sempre foi mal ensinada, no sentido em que nunca se falava verdadeiramente do que estava em causa, do significado do romance. Ele era listas de figuras de estilo, listas de personagens, listas de factos do enredo — tudo, menos o que realmente conta. O ensino, quando é mau, tem o toque de Sadim (Midas ao contrário) e era por isso que eu dizia abertamente, quando estava no 9.º ano: “na escola nada se cria, nada se transforma, tudo se perde”.

A propósito dos comentários de um leitor lembrei-me das figuras do Ega e do Carlos da Maia e talvez valha a pena explicar sinteticamente o que pretendia Eça denunciar com estas personagens. Em ambos os casos, trata-se de pessoas endinheiradas, mas não muitíssimo ricas; pessoas que não precisam verdadeiramente de trabalhar para viver porque podem viver da gestão do património herdado. Mas ambos recebem uma educação esmerada, contra os próprios padrões nacionais e langorosos da altura. Na verdade, as passagens em que Eça contrasta a educação vigorosa de Carlos da Maia com a educação nacional, doentia e mole, fazem lembrar o discurso actual do “eduquês”, que trata os estudantes como atrasados mentais que não podem ser incomodados com o esforço de aprender literatura, filosofia ou matemática a sério — tem de ser umas brincadeiras mentecaptas com muitos computadores e bonecos para as criancinhas não se aborrecerem, e não podem fazer exames nacionais para não terem um ataque de coração, coitadas. Mas hoje a perversidade é que isto só se aplica aos filhos dos pobres, na escola pública; os filhos dos outros, incluindo os filhos dos responsáveis do ministério, estudam a sério, e muito, e não é os folhetos sobre milho que eles andam a ler.

Tanto Ega como Carlos, assim como a figura memorável do seu avô, são profundamente críticos relativamente à cultura e política nacionais. Mas, depois de os dois primeiros receberem a melhor educação disponível no seu tempo, o que acontece? Regressam a Lisboa, cheios de esperanças de que vão fazer algo: o Carlos como médico, Ega como advogado e potencial escritor. Passam anos. E nada fazem excepto andar em festarolas, bebedeiras e conversas frívolas. Esta é a mensagem principal do romance: somos um povo de bestas que, dadas as melhores condições, não conseguem sair desta moleza que consiste em fazer revoluções na pastelaria. O próprio Eça sofria na pele esta situação e chegou a encurtar as suas visitas a Lisboa (para desgosto da sua mulher, que detestava Paris), pois não conseguia trabalhar como escritor por força de tantas jantaradas e conversas moles que fingiam mudar o país e o universo enquanto os convivas tomavam vinho do porto num restaurante caro.

Esta é a radiografia de Eça: somos um país de hipócritas amadores, falta-nos o profissionalismo para fazer realmente algo, nada fazemos senão animar conversas da treta. Urge mudar este estado de coisas e formar profissionais críticos, activos, generosos, bem formados, nos mais diversos domínios: da filosofia à física, da pintura à música, da literatura à ciência política. Profissionais que façam mais do que revoluções de pastelaria: que mudem realmente o país, abandonando a ideia de que a cultura e a ciência são actividades boas apenas para as tias de Cascais se entreterem à hora do chá, trocando pedantismos de Wikipédia e citações de pensadores mortos.

in:dererumundi.blogspot.com

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