A imprensa internacional acompanhou, a par e passo, o naufrágio do veleiro pertença do 'mais rico americano solteiro' do início do século XX, acontecido nos mares do Porto Moniz
O Varuna era construído em aço, tinha duas hélices, deslocava-se a uma velocidade máxima de 17 nós, e o seu interior estava luxuosamente decorado.
Quem era E. Higgins
Na sequência do artigo de Patrícia Gaspar nesta mesma revista 'Mais' - no passado dia 15 -, sobre o destino trágico do Varuna traçado na costa norte da Madeira, a 16 de Novembro de 1909, fizemos uma pesquisa na coeva imprensa nova-iorquina, nomeadamente o New York Times (NYT), o New York Daily Tribune (NYDT) e o The Sun, a fim de constatarmos o modo pelo qual este acidente foi ali retratado, e confrontar esses dados com alguns que, na altura, foram publicados no Diário de Notícias.
Eugene Higgins (1860-1948), o proprietário do Varuna, era o herdeiro da fortuna do seu pai, que esteve ligado ao fabrico de carpetes. Possuía uma residência em Nova Iorque no cruzamento da 5th Avenue com a 34th Street, então a Meca da alta sociedade nova-iorquina, e onde actualmente se situa o Empire State Building. Era um 'bon vivant', que vivia sem preocupações, dedicando-se a viajar pelo mundo a bordo do seu iate. Para além disso, era também um desportista apaixonado pelo golfe, hipismo e esgrima, tendo sido, inclusivamente, o campeão nacional americano desta última modalidade em 1888.
A construção do Varuna Um artigo do NYT de 22 de Novembro de 1896, redigido pelo seu correspondente em Glasgow, na Escócia, referia que o Varuna, iate de 1500 toneladas construído num estaleiro naval de A. & J. Inglis of Pointhouse Partick, junto ao rio Clyde, já havia sido lançado à água e estava quase pronto para ser entregue ao seu proprietário, o milionário nova-iorquino Eugene Higgins. Referia que nenhum membro da nobreza britânica e ainda muitas cabeças coroadas da Europa não se podiam gabar de possuir um barco semelhante. O Varuna era construído em aço, tinha duas hélices, deslocava-se a uma velocidade máxima de 17 nós, era pintado de branco e o seu interior estava luxuosamente decorado, da proa à popa. Este iate possuía ainda amplos camarotes para o seu dono e convidados, revestidos em madeira de carvalho, e ainda alojamento para a numerosa tripulação. Tinha, ainda, estabilizadores, para proporcionar maior conforto aos passageiros durante as travessias marítimas mais agitadas, e entre as suas várias inovações contavam-se compartimentos de contra-afundamento, de modo a manter o iate a flutuar em caso de acidente.
Algumas curiosidades No livro 'Seductive journey: American tourists in France from Jefferson to the Jazz Age', de Harvey A. Levenstein, encontrámos a referência de que em 1897 o iate a vapor Varuna, de 306 pés de comprimento (93 metros), bateu o recorde da travessia do Atlântico em navios da sua categoria, indo dos Estados Unidos da América à França, com uma tripulação de 66 tripulantes, em apenas oito dias. Citando um jornal da época, o 'Paris Herald' de 27 de Janeiro de 1897, este autor refere que uma das características surpreendentes do Varuna era um compartimento onde se encontravam armazenados vários tipos de armas, em número suficiente para a tripulação repelir um ataque de piratas, se acaso fosse necessário.
Num artigo do NYT, de 1 de Agosto de 1909, referente aos iates modernos e ao seu custo de manutenção, o Varuna, de Eugene Higgins, era listado junto do Margarita, de Anthony J. Drexel, do Nahma, de Robert Goelet, e do North Star, de Cornelius Vanderbilt, sendo que no caso dos três primeiros a construção do casco, em aço de primeira qualidade, a montagem das caldeiras, motores, e equipamento diversificado tais como mastros, âncoras, cabos e botes importava na módica quantia de 750.000 dólares. E para manter um iate desta categoria era preciso despender a quantia de 90.000 a 100.000 dólares por ano, isto sem contar com as despesas suplementares decorrentes das longas viagens marítimas, onde estava incluída uma factura astronómica em carvão - consumia cerca de 300 toneladas por mês, o que redundaria numa despesa mensal de cerca de 1800 dólares. Por esta altura havia 14 iates a vapor inscritos no New York Yacht Club, com mais de 1000 toneladas de arqueação bruta, e o Varuna, de Eugene Higgins, ocupava a quinta posição, o que era sinónimo da sua imponência.
No entanto, tanta sumptuosidade tinha o seu preço. Segundo um artigo vindo a público no New York Daily Tribune (NYDT) de 2 de Agosto de 1909, os iates de americanos que haviam sido construídos no estrangeiro deveriam começar a pagar uma elevada taxa anual às finanças. No mesmo artigo foi feita uma estimativa de quanto o proprietário do Varuna teria de desembolsar face a esta nova lei, e foi apurada a quantia anual de 11.011 dólares. A 3 de Outubro, o mesmo jornal referia que três proprietários de iates sobre os quais impendia a nova taxa haviam pago a nova contribuição fiscal, calculada em 7 dólares por tonelada ou em 35% ad valorem, mas que outros, incluindo os donos dos navios cujas fotos figuravam na respectiva página do jornal, e onde estava patente a do Varuna, estavam a contestar esta nova taxa nos tribunais.
O percurso do Varuna antes do acidente Segundo noticia o NYDT de 16 de Setembro de 1909, Eugene Higgins havia chegado na véspera a Nova Iorque a bordo do Varuna, após se ter demorado cerca de um ano no estrangeiro, tendo passado o último Inverno no Mediterrâneo, e que dentro de um dia ou dois iria para Newport (no estado de Rhode Island). Efectivamente, dois dias depois, o mesmo jornal publicou algumas notícias chegadas de Newport, na véspera, por via telegráfica, entre as quais se encontrava a de que este milionário havia chegado de Nova Iorque a bordo do seu iate, trazendo consigo um grupo de convidados, entre os quais se contava o Conde de Mazelière e Crosby Whitman, de Paris, e que se demorariam por aquela famosa estância balnear - onde os multimilionários tinham as suas mansões para passarem o Verão - durante uma semana.
Na edição de 6 de Novembro do The Sun, foi publicado um despacho enviado de Hamilton, nas Bermudas, no dia anterior, segundo o qual o iate Varuna, com o seu proprietário e um grupo de amigos a bordo chegara àquele local na véspera, e o navio, que havia saído de Nova Iorque na terça-feira anterior, tinha tido uma viagem tormentosa. Seria o prenúncio do destino fatal que o aguardava.
Dois dias depois, o mesmo jornal publicou um despacho telegráfico recebido no dia anterior, da mesma localidade, segundo o qual o iate Varuna havia partido na véspera, de manhã, rumo à Madeira.
O naufrágio do Varuna na imprensa Na edição de 17 de Novembro de 1909 do NYT, este jornal de referência publicou o conteúdo de um telegrama recebido da Madeira no dia anterior, referindo que o Varuna, pertencente a Eugene Higgins, membro do New York Yacht Club, havia encalhado na costa noroeste e que dois rebocadores haviam ido em assistência ao navio (um lapso, visto que, segundo afirmou na altura o DN, foram o Gavião e o Açor, navios de cabotagem, que foram em seu auxílio).
Esta mesma notícia foi ainda publicada no NYDT na edição do mesmo dia, acrescentando alguns dados sobre Eugene Higgins e o seu iate, cujas últimas notícias remontavam à sua saída das Bermudas, a 5 de Novembro. Sobre o seu proprietário foi referido que contava 41 anos de idade (na verdade tinha 49), possuía uma fortuna pessoal estimada em 50 milhões de dólares, era licenciado pela Universidade de Columbia, sendo ainda membro dos mais famosos clubes de iates de Nova Iorque e da Europa. Foi, ainda, referido que passava a maior parte do tempo no seu Varuna, onde mantinha a disciplina de um navio de guerra, e que todos os seus convidados tinham de agir em conformidade com as suas orientações.
Notícias do Funchal
Na edição do dia 18 do NYT foram publicadas notícias emitidas do Funchal na véspera, dando conta do facto de Eugene Higgins e seus convidados se encontrarem bem, apenas se registando um desaparecido, de entre os membros da tripulação. Noticiou também que aquando do encalhe do iate, às duas da manhã, foram lançados botes à água com o dono do barco e seus convidados, que foram desembarcados em Ponta Delgada, indo alguns botes até o Porto Moniz e São Vicente. Os tripulantes de outro bote foram salvos por um vapor que passava por perto e foram trazidos para o Funchal. Nada foi salvo do iate, que foi arrastado por ondas revoltas para a costa, caracterizada por altas falésias e pequenas baías. Acrescentava que alguns dos náufragos permaneceram na costa, perto do local do naufrágio, enquanto que outras pessoas do grupo foram para algumas aldeias, onde foram alojados e alimentados. Era ainda referido que o mar se encontrava muito agitado naquele dia e que o Varuna embatia violentamente contra as rochas, e que apesar da sua estrutura em aço o navio parecia estar perdido. Este artigo termina referindo que este era um dos iates mais apalaçados até então existentes. A par de alguns dados sobre a sua construção e características, foi referido que os livros da sua biblioteca estavam avaliados em vários milhares de dólares, e que desde que havia sido lançado à água, o seu proprietário havia passado a maior parte do tempo a navegar pelo mundo, passando quase todos os Invernos no Mediterrâneo e Verões em redor da costa de Newport e do Maine. Segundo esta fonte, o Varuna havia deixado Nova Iorque, com o seu proprietário e alguns convidados a bordo, a 2 de Novembro, e três dias depois tinha chegado às Bermudas, de onde saíra no dia 7, em direcção à Madeira, para onde o grupo pretendia seguir viagem para Gibraltar e Mediterrâneo. Este artigo terminava referindo que Eugene Higgins tinha 51 anos (na verdade, repete-se, tinha apenas 49), havia herdado a fortuna do seu pai e que era regularmente referido como sendo o solteiro mais rico da América. A edição do mesmo dia do NYDT repetiu praticamente ipsis verbis o que noticiou o NYT, acrescentando que o Varuna estava cheio de água e que acreditava-se que ficaria destruído em pedaços. O jornal The Sun, de 18 de Novembro, por seu turno, referiu que alguns despachos emitidos do Funchal anunciavam que o esplêndido iate a vapor de Eugene Higgins, tinha encalhado na Madeira e estava a ser acossado por ondas revoltas, que provavelmente o destruiriam, e que o seu proprietário e os seus amigos haviam sido salvos. E ao chegar a terra o dono teria comunicado com o Funchal no sentido de pedir dois rebocadores para ver se ainda seria possível salvar a sua embarcação.
Causa desconhecida
A 20 de Novembro de 1909, o NYT publicou notícias recebidas de Lisboa, no dia anterior, referindo que eram doze os naúfragos do Varuna recolhidos dum bote à deriva - sem remos, em resultado da luta que tiveram com as ondas revoltas - ao largo da ilha pelo vapor inglês Hasperly. Concluía este artigo a referência que ascendia a 65 o número de pessoas salvas e que o iate havia sido abandonado como perdido. A mesma notícia foi ainda publicada, nos mesmos termos, no NYDT do mesmo dia.
A 22 de Novembro, o NYDT publicou um despacho recebido de Paris na véspera, dando conta do facto de que Eugene Higgins e os seus amigos haviam chegado bem ao Funchal. Quanto ao Varuna, foi referido que ainda ninguém se podia aproximar do iate, visto o mar ainda continuar alteroso e a abater-se sobre a embarcação. Foi ainda noticiado que o comandante afirmou que o iate estava fora da sua rota, por alguma razão desconhecida, e continuava a afirmar que uma corrente forte e estranha havia arrastado o navio para os baixios.
O NYT, de 27 de Novembro, divulgou notícias recebidas de Paris, no dia anterior, citando um especial para o Figaro, desde Madrid, segundo as quais Higgins havia dado 5000 dólares ao homem que o havia salvo, aquando do naufrágio do Varuna. O NYDT, do mesmo dia, também publicou esta notícia, pelas mesmas palavras.
A 28 de Novembro, o NYT noticiou que na véspera a tripulação do iate havia chegado a Southampton, com excepção do comandante, que havia ficado perto dos destroços na esperança de poder recuperar alguns bens de valor. Esta mesma notícia foi publicada na edição do NYDT do mesmo dia, sendo esta a última notícia deste jornal sobre este assunto. O mesmo assunto foi ainda veiculado na edição desse dia 28 do The Sun, acrescentando que os náufragos tinham viajado até Inglaterra no vapor Armandale Castle, e que os membros da tripulação haviam afirmado que existia pouca esperança de se salvar o Varuna, e que Eugene Higgins havia ficado no Funchal, juntamente com o comandante do iate. Esta também foi a última notícia deste jornal nova-iorquino sobre este naufrágio.
Epílogo de um naufrágio Após o desastre do Varuna, Eugene Higgins não teve pressa de regressar aos Estados Unidos da América. Afinal de contas, a sua viagem até à Europa, para passar o Inverno, tinha sido bruscamente interrompida.
O seu retorno à América ocorreu em Setembro de 1910, a bordo do navio Kronprinzessin Cecilie, da North German Lloyd, e foi noticiado no NYT a 15 de Setembro de 1910 por uma questão muito simples: tinha-se 'esquecido' de declarar à Alfândega do seu país as roupas que trouxe do estrangeiro, e foi condenado a pagar 3000 dólares de impostos sobre as mesmas. Em sua defesa alegou o desconhecimento de tal procedimento, visto que aqueles bens eram roupas que ele já usava há algum tempo. Alegou ainda que há já muito tempo que não chegava à América em navio a vapor de uma linha comercial, fazendo-se sempre transportar no seu iate Varuna e, apesar de fazer dele a sua residência, quando ficava em terra levava consigo poucos dos seus pertences.
A última notícia do NYT referente ao acidente do Varuna foi publicada a 20 de Março de 1911, e era proveniente de Paris, dando conta da decisão do governo francês de atribuir a Eugene Higgins uma medalha de ouro de 2.ª classe por salvamento, por aquando do naufrágio ter 'salvo' dois cidadãos franceses. Não deixa de ser curiosa esta notícia.
Há quem conjecture que o naufrágio do iate, que à altura contava 13 anos de idade, fora propositado. Se o foi ou não, não sabemos. Há a considerar o novo dado da sobretaxa que seria aplicada na América aos iates construídos no estrangeiro. Mas para o milionário Higgins isso seriam apenas 'peanuts'. O que se pode confirmar, face aos dados da imprensa nova-iorquina da época, é que o Varuna vinha em direcção à Madeira, onde contava fazer escala, antes de prosseguir viagem até Gibraltar e Mediterrâneo, daí se ter aproximado (em demasia) da nossa costa. Por seu turno, o DN de 17 de Novembro - o dia a seguir ao acidente - afirmou que o iate seguia das Bermudas para Marselha, citando o New York Herald (que não conseguimos consultar). E há ainda que ter em consideração o facto que o acidente ocorreu às duas da manhã e que toda aquela zona estava imersa em escuridão, visto que o farol da Ponta do Pargo ainda não tinha sido construído. Só o foi em 1922, apesar daquele local já estar referenciado para a edificação de um desde 1883, segundo refere J. Teixeira de Aguilar no livro Faróis da Madeira, Porto Santo, Desertas e Selvagens. Chamamos ainda a atenção para outro dado curioso, referido no DN de 18 de Novembro, dois dias após o encalhe do Varuna, segundo o qual o iate ainda se mantinha direito. Devia-se isso ao facto dele possuir estabilizadores e os tais compartimentos especiais anti-afundamento? Julgamos que sim.
A terminar, apresentamos uma curiosa anotação referente ao nome deste iate. Varuna é o nome da deusa indiana do Oceano, que era também conhecedora e controladora de tudo, tendo ainda a seu cargo a administração da justiça. Seria o desfecho trágico deste iate um 'castigo' da deusa ocasionado pelas excentricidades de Eugene Higgins?...
Duarte Miguel Barcelos Mendonça, DN Madeira
NOTA DA REDACÇÃO - Ainda hoje e quando a maré está baixa, do Calhau das Achadas da Cruz se podem avistar as caldeiras do "Varuna"