por: Maria João Martins
Arqueólogos, políticos locais e nacionais, escritores e voyeurs com gosto pelo macabro andam há anos empenhados na recuperação das ossadas de Federico García Lorca, fuzilado perto de Granada, nos primeiros meses da Guerra Civil de Espanha. A demanda, longe de ser consensual mesmo entre os familiares do poeta, funciona, no entanto, como um excelente símbolo da relação, necessariamente tensa, que a democracia espanhola estabelece com o conflito de 1936-39 e com a ditadura de Franco.
Não se trata, porém, de questionar apenas o funcionamento das instituições que vigoraram no país entre 1939 e 1975, nem da luta sem quartel entre os esbirros fascistas e os que se lhes opunham. Em Espanha, como em Portugal, a ditadura, sustentada sobre a influência social da Igreja Católica, soube imiscuir-se na intimidade dos cidadãos, no modo como pensavam, trabalhavam e amavam. Moldou-lhes espíritos e corpos com a eficácia do oleiro na sua roda.
A ficção contemporânea espanhola (na literatura, mas também no cinema) reflecte exaustivamente sobre este trabalho quase eugénico sobre as consciências. Recordo, por exemplo, o belíssimo O Mundo, de Juan José Millás (editado em Portugal pela Planeta, chancela que, em breve, nos trará outro livro do escritor, Os Objectos Chamam-nos), em que, através de um processo narrativo indiciador de simultaneidade, fica demonstrada a continuidade dessa repressão, muito depois dela ter terminado, no tempo e no espaço. Sentado à secretária, enquanto escreve, Millás ainda sente, em qualquer parte de si, a chuva que o encharcou até quase à pneumonia no dia em que, desesperado, fugiu à violência de uma academia de padres para alunos com pouco aproveitamento. O fascismo era também isto.
Este confronto com memórias muito dolorosas (presente em autores como Antonio Muñoz Molina, Cármen Martín Gaite, Montserrat Roig ou Juan Luís Cebrián, entre outros) domina também Anatomía de un Instante, de Javier Cercas (autor de Os Soldados de Salamina, este sobre um episódio particular da Guerra Civil de Espanha). Considerado pelo suplemento "Babelia" do El Pais melhor livro espanhol de 2009, pega no momento em que, em plena transição para a democracia, Espanha poderia ter regressado às trevas: 23 de Fevereiro de 1981, quando Antonio Tejero irrompeu pelo Congresso dos Deputados, em Madrid, disposto a desencadear o golpe de Estado. Considerando que a realidade superava amplamente a ficção, Javier Cercas pegou na coragem de três homens que não se submeteram às ordens de Tejero: Adolfo Suárez, então presidente do Governo, Gutiérrez Mellado, ministro da Defesa, e Santiago Carrillo, líder do Partido Comunista Espanhol. De onde se conclui que, desse confronto com um passado obscuro, não nasce apenas a melancolia pelo tempo injustamente perdido, mas também uma certa forma de redenção. E muito boa literatura.
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