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sábado, janeiro 16, 2010

"Serenata à chuva"


Cara leitora, estamos a criar uma geração de mariquinhas. Os nossos miúdos estão a crescer numa redoma pós-moderninha, longe das coisas mais simples. Há dias, uma menina dizia-me que os frangos vêm do supermercado. Ou seja, aquela criança não associa a galinha, que vê no galinheiro, à carne, que vê no prato. Deve achar que a comida vem de uma fábrica mágica onde o plástico inerte ganha a forma de bife suculento. Ontem, eu não conseguia entrar no meu bairro. Chovia uma carga que assustaria até Noé. Perante o dilúvio, os papás foram buscar os meninos ao liceu. A fila de carros era um espectáculo bíblico. Os meninos, claro, não podiam regressar a pé, porque não sabem o que é um chapéu-de-chuva (não deve fazer pendant com as camisas, ou assim), e porque não podem apanhar 'molhas', coitadinhos. No meu tempo, a malta apanhava violentas 'molhas'. Até era divertido: à chuva, elas ficavam mais permeáveis a beijos e afins.
Nos meus anos 80, a malta andava na rua, nos parques, nas matas, nos campos. Sabíamos o que era a terra, aquela coisa que está debaixo do alcatrão. A caminho da escola, descobríamos, e matávamos, a fauna local. Chegámos aos 10 anos com o vigor de uma tropa de assalto. Tínhamos, nas mãos, calos transmontanos. Tínhamos, no rosto, uma pele tisnada de alentejano. Tínhamos cicatrizes em todos os joelhos, os de baixo e os de cima (vulgo: cotovelos). Ora, tudo isto é ficção científica para a malta que nasceu nos anos 90. Os jovens de hoje não põem os pés na rua. Saltam da cama para o carro do papá. Do carro, saltam para a escola. À tarde, saltam do carro da mamã para a natação ou aulas de ballet. Nunca têm contacto com a rua. Não por acaso, estes miúdos têm medo de tudo o que está no exterior da sua redoma. Estamos a criar mariquinhas faraónicos, cara leitora. Mariquinhas que não sabem como é bom sacar um beijo à chuva.
Esta hiperprotecção dos jovens revela que a nossa sociedade entrou num triângulo das Bermudas familiar: os crianças mandam nos pais. Aliás, a criançada domina a sociedade. Como os cristãos na Roma de Nero, os adultos vivem na clandestinidade. A televisão é para adolescente ver. A sala de cinema é território juvenil. Na escola, o menino não tolera ser ensinado pelo professor. Em todo o lado, em qualquer lugar, o menino tem sempre razão, mesmo quando tenta bater no avô. Esta inversão da moral, sempre com o objectivo de manter o menino na Terra do Nunca, é algo profundamente perverso. E a consequência mais sinistra desta perversão social e moral é mesmo o abandono dos velhos. As famílias só têm olhos para as criancinhas, e acabam por desprezar os avós e bisavós das ditas criancinhas.
No domingo, enquanto pais e meninos passavam pela ressaca de ano novo, nove velhos morreram entre as dez da manhã e as dez da noite (só em Lisboa). Morreram devido à ressaca do abandono. Alguns suicidaram-se, porque já não suportavam a solidão. Cara leitora, nas traseiras da sociedade Peter Pan existe uma ruela escura, pestilenta e imoral: o abandono dos velhos. Os papás ficam a jogar jogos electrónicos com os meninos, e, depois, são incapazes de visitar os mais velhos. Perante isto, deixo-lhe aqui um repto, cara leitora: destrua a consola, castigue o seu marido, e, acima de tudo, deixe o puto ir para a rua, a ver se ele descobre o caminho para um beijo à Gene Kelly.

Henrique Raposo
Texto publicado na edição do Expresso de 9 de Janeiro de 2010

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