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segunda-feira, junho 08, 2009

"Uma Criatura" - Machado de Assis

Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas
Com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo.
Gosta de colibri, como gosta de verme.
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela o chacal é, como a rola, inerme;

E caminha na terra imperturbável,
Como pelo vasto areal um vasto paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu primeiro comovem a folha,
Que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.
Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as suas forças dobra.
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a morte; eu direi que é a vida.


Assis, Machado de, 1839-1908

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