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sábado, julho 04, 2009

ÁGORA - um filme a estrear que nos conta a história de HIPÁCIA


Cannes. Um dos filmes de maior sucesso no badalado festival francês foi "Ágora", direcção de Alejandro Amenabar. A estrela é a inglesa Rachel Weiz, premiada com o Óscar 2006 de melhor atriz coadjuvante em "O jardineiro fiel", dirigido por Fernando Meirelles.
Em "ÁGORA" ela interpreta Hipácia, única mulher da Antiguidade a se destacar como cientista. Astrónoma, física, matemática e filosofa, Hipácia nasceu em 370, em Alexandria. Foi a última grande cientista de renome a trabalhar na lendária biblioteca daquela cidade egípcia. Na Academia de Atenas ocupou, aos 30 anos, a cadeira de Plotino. Escreveu tratados sobre Euclides e Ptolomeu, desenvolveu um mapa de corpos celestes e teria inventado novos modelos de astrolábio, planisfério e hidrómetro.
Neoplatónica, Hipácia defendia a liberdade de religião e de pensamento. Acreditava que o Universo era regido por leis matemáticas. Tais ideias suscitaram a ira de fundamentalistas cristãos que, em plena decadência do Império Romano, lutavam por conquistar a hegemonia cultural.
Em 415, instigados por Cirilo, bispo de Alexandria, fanáticos arrastaram Hipácia a uma igreja, esfolaram-na com cacos de cerâmica e conchas e, após assassiná-la, atiraram o corpo a uma fogueira. Sua morte selou, por mil anos, a estagnação da matemática ocidental. Cirilo foi canonizado por Roma.
O filme de Amenabar é pertinente nesse momento em que o fanatismo religioso se revigora mundo afora. Contudo, toca também outro tema mais profundo: a opressão contra a mulher. Hoje, ela se manifesta por recursos tão sofisticados que chegam a convencer as próprias mulheres de que esse é o caminho certo da libertação feminina.
Na sociedade capitalista, onde o lucro impera acima de todos os valores, o padrão machista de cultura associa erotismo e mercadoria. A isca é a imagem estereotipada da mulher. Sua auto estima é deslocada para o sentir-se desejada; seu corpo é violentamente modelado segundo padrões consumistas de beleza; seus atributos físicos se tornam omnipresentes.
Onde há oferta de produtos - TV, Internet, outdoor, revista, jornal, folheto, cartaz afixado em veículos, e o merchandising embutido em telenovelas - o que se vê é uma profusão de seios, nádegas, lábios, coxas etc. É o açougue virtual. Hipácia é castrada em sua inteligência, em seus talentos e valores subjectivos, e agora dilacerada pelas conveniências do mercado. É subtilmente esfolada na ânsia de atingir a perfeição.
Segundo a ironia da Ciranda da bailarina, de Edu Lobo e Chico Buarque, "Procurando bem / todo mundo tem pereba / marca de bexiga ou vacina / e tem piriri, tem lombriga, tem ameba / só a bailarina que não tem". Se tiver, será execrada pelos padrões machistas por ser gorda, velha, sem atributos físicos que a tornem desejável.
Se abre a boca, deve falar de emoções, nunca de valores; de fantasias, e não de realidade; da vida privada e não da pública (política). E aceitar ser lisonjeiramente reduzida à irracionalidade analógica: "gata", "vaca", "avião", "melancia" etc.
Para evitar ser execrada, agora Hipácia deve controlar o peso à custa de enormes sacrifícios (quem dera destinasse aos famintos o que deixa de ingerir...), mudar o vestuário o mais frequentemente possível, submeter-se à cirurgia plástica por mera questão de vaidade (e pensar que este ramo da medicina foi criado para corrigir anomalias físicas e não para dedicar-se a caprichos estéticos).
Toda mulher sabe: melhor que ser atraente, é ser amada. Mas o amor é um valor anti capitalista. Supõe solidariedade e não competitividade; partilha e não acumulo; doação e não possessão. E o machismo impregnado nessa cultura voltada ao consumismo teme a alter idade feminina. Melhor fomentar a mulher-objecto (de consumo).
Na guerra dos sexos, historicamente é o homem quem dita o lugar da mulher. Ele tem a posse dos bens (património); a ela cabe o cuidado da casa (matrimonio). E, é claro, ela é incluída entre os bens... Vide o tradicional costume de, no casamento, incluir o sobrenome do marido ao nome da mulher.
No Brasil colonial, dizia-se que à mulher do senhor de escravos era permitido sair de casa apenas três vezes: para ser baptizada, casada e enterrada... Ainda hoje, a Hipácia interessada em matemática e filosofia é, no mínimo, uma ameaça aos homens que não querem compartir, e sim dominar. Eles são repletos de vontades e parcos de inteligência, ainda que cultos.
Se o atractivo é o que se vê, por que o espanto ao saber que a média actual de durabilidade conjugal no Brasil é de sete anos? Como exigir que homens se interessem por mulheres que carecem de atributos físicos ou quando estes são vencidos pela idade?
Pena que ainda não inventaram botox para a alma. E nem cirurgia plástica para a subjectividade.

In: site Adital, autor frei Betto, escritor e assessor de movimentos sociais

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