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sexta-feira, novembro 13, 2009

Inédito – Fernando Pessoa



(Sem título)

Matthew Arnold, que foi (embora aqui se não saiba, o que

quer dizer apenas que aqui se não sabe) um1 dos grandes

poetas do seculo dezanove, definiu, numa phrase que ficou

celebre, a nullidade intima da civilização puramentematerial:

"De que te serve umcomboio que te leva num quarto

de hora de Camberwell para Islington, se te leva de uma

vida reles e estupida em Camberwell para uma vida reles e

estupida em Islington?"

Com effeito, valendo apenas como facilidades para uma

vida que deve termais altos fins, as conquistas materiaes

nada significam em si mesmas senão quando effectivamente

resulta da sua applicação qualquer coisa relativa a esses

altos fins. Sobre a natureza d'esses altos fins podemos divergir:

para uns serão simplesmente a grandeza nacional (é

um conceito estreito, mas é, para amaioria dos homens, a

unica coisa que verdadeiramente os arrasta para fóra do

seu egoismo natural, e assim torna possivel que façam mais

alguma coisa que vegetar activamente); para outros consistirão

na felicidade humana (o que é umconceito egualmente

restricto, pois os cães e os gatos, se fossem capazes de

conceitos sociologicos, não teriam outro); para alguns consistirão

em determinados fins religiosos; para outros (entre

os quaes me incluo) na creação de valores civilizacionaes —

valores artisticos, scientificos, philosophicos — que sirvam

de estimulo e de consolo aos homens futuros.

Em si mesma, a civilizaçãomaterial nem sequer é civilização,

mas simplesmente aperfeiçoamento. Melhoram as

condições emque os homens vivem; os homens podem

melhorar ou não. É sabido por todos os sociologos que as

condições climaticas extremamente benevolas tendem a

estorvar o progresso e a civilização do povo sujeito a ellas,

porisso mesmo que não suscitam opposição, fazendo viver

a vontade, não dificultam a vida, dispertando a emoção, não

criam problemas de vida, acordando a intelligencia.

Quando, pois, em resposta a argumentos, como aquelles2

que de todas as partes — excluindo as democraticas e radicaes,

que atacam por uma questão de fanatismo politico —

se levantam contra o fascismo, se responde com a regularização

do horario dos comboios, a melhoria do valor da lira,

e, até, o estabelecimento da ordem publica (suppondo que a

paz varsoviana3 seja a ordem), não se responde a nada: allega-

se simplesmente uma coisa differente, e que não vem

para o caso.

Matar, torturar e enxovalhar não são phenomenos necessariamente

involvidos na producção do bom funccionamento

dos comboios. Não é inconcebivel que se possa melhorar a

lira sem queimar bibliothecas particulares, e exercer sobre

a imprensa uma censura de caracter physico. A propria

manutenção da ordem não [...]
edição nº 163 do jornal i – 12 Novembro 2009

Ilustração: Inês Sena © Guimarães Editores

1No original: "os".

2No original: "aquellas".

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