Primeiro tenho de vos falar do Varela. Era furriel enfermeiro da companhia quando estive na minha comissão militar em Moçambique. Um rapaz sempre bem disposto, amigo de anedotas e, em meu entender, fútil e vagamente inconsciente. Para ele a vida era uma espécie de brincadeira contínua e nem o teatro de guerra era razão para lhe alterar o comportamento.
Enquanto eu e muitos de nós tínhamos preocupações políticas e sociais e nos questionávamos sobre o país, o futuro e o mundo em geral, ele tinha uma única preocupação: MIÚDAS!
Para o Varela miúdas eram raparigas de um modo geral mais novas que ele e vivia em função de as conquistar.
Diga-se que fisicamente era vulgar, moreno, estatura média, cabelo encaracolado e um nariz adunco que lhe dava um ar de ave de rapina benévola, o rosto emoldurado por uma expressão de ingénuo descarado. Dançarino exímio, conversador nato, tinha um êxito notável junto do sexo oposto que nos deixava roídos de inveja. Um pinga-amor a tempo inteiro que ainda tinha a extraordinária qualidade de ficar amigo de todas as antigas namoradas.
Verdade seja que esses namoros eram fugazes, muitas vezes superficiais e sem profundos envolvimentos físicos o que para nós, que já fazíamos a distinção entre mulheres e miúdas, eram uma prova de imaturidade.
Por isso, quando naquela noite escura, no aquartelamento do destacamento da fronteira no extremo norte de Moçambique, à volta de uma lata de cerveja com um pavio mergulhado em azeite a fazer de candeeiro, ele disse aquela frase ficámos siderados!
Estávamos a muitas dezenas de quilómetros de um lugar minimamente civilizado, rodeados de arame farpado e tínhamos feito um intervalo numa jogatana de King. Na palhota pomposamente designada de messe de oficiais, eu, que era o comandante do destacamento, o administrador de posto, 2 furriéis do meu pelotão e o Varela que acompanhara um pelotão de passagem numa operação de rotina nas redondezas.
Tínhamos esgotado os temas de conversa habituais, futebol, mulheres, política, mulheres, e a merda da guerra. Evoluiu a discussão para a possibilidade sempre latente da morte prematura de algum de nós e ele sai-se com esta:
Se calhar fui responsável pela morte de uma miúda!
Passado um hiato de espanto silencioso todos o questionámos à vez. Sabíamos que era incapaz de fazer mal a uma mosca, um dos tipos mais pacíficos que conhecíamos e aquela declaração vinda da boca de quem vinha e no tom contrito em que foi proferida pareceu ecoar estranhamente naquele ermo e fez-nos sentir mais sós e vulneráveis, mas simultaneamente ávidos de o escutar.
Eis a história do Varela.
Foi na noite da passagem de ano, pouco antes da partida para o ultramar. O grupo do Varela foi passar o réveillon ao Instituto Superior Técnico. Ele não tinha par certo, a noite era de aventuras e sabia desenrascar-se. Na confusão reinante separou-se do grupo e depois de baterem as 12 deu consigo num daqueles comboios intermináveis feito de filas indianas que marchavam pelas salas a entoar sambas, os braços nos ombros de uma das raparigas mais atraentes que já conhecera.
Pá, uma miúda de sonho. Olhos verdes, ou azuis, já nem sei bem, umas pernas, um corpo, tipo estrela de cinema. E simpática!
Vai daí começou a exibir o seu reportório de sedução. Fazia-a rir, elogiava-lhe o vestido, a maneira como dançava, enfim, esmerava-se. Foram beber champanhe e nessa altura também ela se perdera do grupo com que viera. Algumas danças depois, já com algum contacto corporal mais estreito, o Varela pronunciara para si mesmo o veredicto da situação.
- Esta está no papo.
Desejoso de poder explorar melhor a sua conquista, num lugar mais calmo, menos ruidoso e preferencialmente a sós teve uma ideia. Na altura estava na moda em Lisboa para os noctívagos a ida ao cacau da Ribeira, um dos poucos destinos possíveis fora de horas. A rapariga concordou de imediato. O trajecto no carro emprestado com antecedência por um amigo, proporcionou alguns jogos de mãos, uns beijos rápidos e a certeza que quase tudo ia ser possível.
Por milagre conseguiram dois lugares ao balcão, empoleirados nos bancos altos, enquanto a multidão se acotovelava no corredor, entre as mesas. Tomado o caldo iniciou o Varela o desbobinar de anedotas, cada uma mais brejeira que a anterior e a rapariga quase perdia o fôlego de riso. Inspirava-o a boca carnuda, os dentes perfeitos, os olhos meigos cheios de promessas…
No clímax da última a rapariga deu uma gargalhada sonora e inclinou a nuca para traz num movimento tão brusco que se desequilibrou e caiu de costas. Por uma daquelas fatalidades imprevisíveis o corredor quase que se esvaziara devido a uma altercação que degenerara numa cena de pancadaria do lado da entrada e entre os que tinham ido ver e participar abrira-se uma clareira imediatamente atrás deles. O som que a cabeça fez ao tocar no chão foi arrepiante.
O Varela saltou do banco e num ápice estavam rodeados por parte dos regressados do espectáculo no exterior e dos que ocupavam as mesas mais próximas. Ela não dava acordo de si, os olhos vítreos e uma saliva espumosa escorrendo dos cantos da boca.
Alguém gritou: chamem uma ambulância. Foi o catalisador da fuga do Varela. No meio da confusão, foi-se infiltrando até à saída, ninguém a reparar no acompanhante da rapariga e já um qualquer com conhecimentos médicos dava instruções e pedia espaço.
Aterrado pegou no carro a tremer e só parou à porta de casa. Porque fugiu?
A coragem nunca fora o seu forte. Teve uma visão da rapariga morta, ou paralisada e as consequências que daí adviriam para o seu futuro eram insuportáveis.
Que havia de dizer aos pais dela? Ele um desconhecido do qual nada sabiam e que apenas podiam avaliar pelos efeitos que provocara? Acreditariam na anedota? Seria interrogado pela polícia, preso talvez, a comissão no ultramar adiada, a vida estragada.
Pela primeira vez ouvíamos o Varela expressar estados de alma complexos e angustiosos. Creio que todos o criticámos, todos teríamos ficado e assumido as responsabilidades.
- Não fui capaz. Nunca tive tanto medo na vida. E o que me dói é que não sei o que lhe aconteceu.
Nos dias seguintes debalde procurou notícias nos jornais, na rádio, na televisão. Em parte alguma havia referência ao incidente.
Tentámos sossegá-lo, ora aí estava a prova que nada de grave ocorrera, talvez tivesse desmaiado apenas. Mas ele abanava a cabeça. Mesmo que fosse assim, que pensaria dele que a abandonara numa situação tão crítica? Teria ficado a odiá-lo? E se tivesse ficado aleijada? Era o peso dessa dúvida e a possibilidade do ódio que o mortificava.
O que o Varela gostava era de saber que nada de mau lhe acontecera e até pedir-lhe perdão. Não queria que ela ajuizasse o comportamento masculino pelo seu, que não fosse mais uma a amaldiçoar os homens!
Naquela noite do alto da minha assumida superioridade moral experimentei um sentimento de desprezo pelo Varela. Claro que eu teria ficado. Um certo culto do cavalheiresco, uma certa propensão para o pessimismo que me levaria a assumir a desgraça como algo inerente à condição humana, etc, etc. Sobretudo a recusa em me identificar como cobarde.
O Varela era cobarde. Não podia deixar de ser quem encarava a vida só numa perspectiva do prazer. No entanto era bem formado, como aliás, mais tarde em circunstâncias particularmente dramáticas o provou. Isso daria outra história.
Ao longo dos anos quando me lembro do episódio daquela noite, já não estou tão certo da minha superioridade moral. Teria eu mesmo ficado? Ou acharia injusto arrostar com o infortúnio que inadvertidamente causara? Seria de facto melhor que o Varela?
Sempre desejei escrever esta história. Em parte porque é minha característica gostar de jogos mentais, de …E se…
Por outro lado porque também eu desejava saber o que aconteceu à miúda. Esperando evidentemente que nada tivesse passado de um susto. Mas também como desagravo ao Varela. Cobarde sim, mas não é a cobardia uma característica intrínseca da nossa natureza? Talvez tenha a secreta e improvável esperança que a miúda, que desejo ser hoje uma senhora respeitável de meia-idade, tenha conhecimento deste escrito e lhe perdoe.
Finalmente porque me incomoda o grão de areia na engrenagem da minha consciência.
Se fosse eu, o que teria feito naquela noite?
Rui Vicente (bancário reformado, coleccionador de pacotes de açúcar e escrevinhador)
25/10/2009
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