Antes que el Rei fosse de Lisboa para Almeirim, ordenou Tristão da Cunha à Índia por capitão de uma armada, da qual, e do que nesta viagem se fez se dirá adiante, no ano de mil quinhentos e oito, em que tornou. Pelo que nestes dois capítulos, que são já derradeiros desta primeira parte tratarei de um tumulto, e levantamento, que aos dezanove dias de Abril, deste ano de mil quinhentos e seis, em Domingo de Pascoela fez em Lisboa contra os cristãos-novos, que foi pela maneira seguinte. No mosteiro de São Domingos da dita cidade estava uma capela a que chamava de Jesus, e nela um crucifixo, em que foi então visto um sinal, a que davam cor de milagre, com quanto os que na igreja se acharam julgavam ser o contrário dos quais um cristão-novo disse que lhe parecia uma candeia acesa que estava posta no lado da imagem de Jesus, o que ouvindo alguns homens baixos o tiraram pelos cabelos de arrasto para fora da igreja, e o mataram, e queimaram logo o corpo no Rossio. Ao qual alvoroço acudiu muito povo, a quem um frade fez uma pregação convocando-os contra os cristãos-novos, após o que saíram dois frades do mosteiro, com um crucifixo nas mãos bradando, heresia, heresia, o que imprimiu tanto em muita gente estrangeira, popular, marinheiros de naus, que então vieram da Holanda, Zelândia, e outras partes, ali homens da terra, da mesma condição, e pouca qualidade, que juntos mais de quinhentos, começaram a matar todos os cristãos-novos que achavam pelas ruas, e os corpos mortos, e os meio vivos lançavam e queimavam em fogueiras que tinham feitas na Ribeira e no Rossio a qual negócio lhes serviam escravos e moços que com muita diligência acarretavam lenha e outros materiais para acender o fogo, no qual Domingo de Pascoela mataram mais de quinhentas pessoas. A esta turma de maus homens, e dos frades, que sem temor de Deus andavam pelas ruas concitando o povo a esta tamanha crueldade, se ajuntaram mais de mil homens da terra, da qualidade dos outros, que todos juntos segunda-feira continuaram nesta maldade com maior crueza, e por já nas ruas não acharem cristãos-novos, foram cometer com vaivéns e escadas as casas em que viviam, ou onde sabiam que estavam, e tirando-os delas de arrasto pelas ruas, com seus filhos, mulheres, e filhas, os lançavam de mistura vivos e mortos nas fogueiras, sem nenhuma piedade, e era tamanha a crueza que até nos meninos, e nas crianças que estavam no berço a executavam, tomando-os pelas pernas fendendo-os em pedaços, e esborrachando-os de arremesso nas paredes. Nas quais cruezas não se esqueceram de meter a saque as casas, e roubar todo o ouro, prata, e enxovais que nelas acharam, vindo o negócio a tanta dissolução que das igrejas tiraram muitos homens, mulheres, moços, moças, destes inocentes, despegando-os dos Sacrários, e das imagens de nosso Senhor, e de nossa Senhora, e outros Santos, com que o medo da morte os tinha abraçado, e dali os tiraram, matando e queimando sem nenhum temor a Deus assim a elas como a eles. Neste dia pereceram mais de mil almas, sem que na cidade alguém ousasse de resistir, pela pouca gente de sorte que nela havia por estarem os mais dos honrados fora, por causa da peste. E se os alcaides, e outras justiças, queriam acudir a tamanho mal, achavam tanta resistência, que eram forçados a se recolher a parte onde estivessem seguros, de não acontecer o mesmo que aos cristãos-novos. (…) Passado este dia, que era o segundo desta perseguição, tornaram terça-feira este danados homens a prosseguir a sua crueza, mas não tanto quanto nos outros dias porque já não achavam quem matar, pois todos os cristãos-novos que escaparam desta tamanha fúria, serem postos a salvo por pessoas honradas, e piedosas que nisto trabalharam tudo o que neles foi.”
Damião de Góis (1502-1574), in “Chronica do Felicissimo Rey D. Emanuel da Gloriosa Memória”, escrito em Lisboa entre 1566 e 1567. Historiador e humanista, Guarda-Mor dos Arquivos Reais da Torre do Tombo, figura central do Renascimento em Portugal – ele próprio acusado mais tarde de “heresia” pela Inquisição por causa das suas simpatias luteranas e da amizade com Erasmo –, Damião de Góis relata com sentida e genuína indignação o massacre de 1506, ao contrário de outros cronistas “cristãos-velhos” que se limitaram posteriormente a fazer um relato desapaixonado e quase burocrático da matança, optando por “branquear” os detalhes mais macabros testemunhados nos escritos de Góis.
Crónicas que sabem bem serem lidas e reflectidas.
ResponderEliminarbj