Quem era, afinal, esse homem que três vezes nos invadiu sem cá ter posto os pés? E o que era, para ele, Portugal? Napoleão Bonaparte, jovem pouco promissor de uma família da pequena aristocracia, fascinou, espezinhou, dominou. Em nome de ideais que, como tantas vezes sucede, são em boa parte o pretexto para materializar ambições de grandeza. Numa vida balizada por ilhas, da Córsega onde nasceu à recôndita Santa Helena onde foi escondido até à morte, foi no velho continente europeu que o génio militar dele fez imperador.
Começando pela segunda das perguntas atrás formuladas, podemos dizer que Portugal, para Napoleão, mais não era do que um despojo de guerra a partilhar, no esquema de vassalidades imperiais em que queria redesenhar a Europa, além de ser uma porta que importava fechar ao inimigo inglês. Como conceito, Portugal era nada, e mesmo o império luso era inatingível, porquanto a tricolor pouco valia no mar.
Já a outra questão – quem era esse homem? – reveste-se da complexidade evidente que impede resposta adequada em tão pouco espaço. Era um génio militar, não duvidemos, mas não pelo que tenha inovado, antes pela agilidade estratégica que revelava no campo de batalha. Pelo pragmatismo, pela rapidez de acção, pela capacidade de surpreender. Construiu uma máquina de guerra total e, mesmo quando quereria a paz, teve de centrar no combate militar toda a sua política e todo o seu reinado: o reinado de um imperador republicano, isto é, um enorme paradoxo.
Essa dualidade desconcertante pode, na forma resumida a que aqui nos obrigamos, ser facilmente descrita: sob a mesma pele vivia um homem que, em simultâneo, queria tornar universais os valores saídos da Revolução Francesa (na realidade, um processo mais longo, que durou até meados de oitocentos) e ser senhor do mundo.
Estudante mediano ou até medíocre – não faltam na História exemplos de grandeza, boa ou má, saída da pequenez -, Bonaparte foi, diz-se, um jovem excluído, menosprezado pelos colegas, fosse pela baixa estatura, pelo sotaque tosco e pelos pontapés na gramática, pelo temperamento egoísta e ensimesmado. Mas foi nesses mesmos tempos de exclusão que – passe a dedução quiçá abusiva – preparou a vingança, bebendo-a dos clássicos. Cícero ou Tito Lívio desenvolveram nele o fascínio pela grandeza imperial, mas foi sobretudo Plutarco, com as “Vidas de homens ilustres”, quem nele fez germinar ao longo da vida o ideal em que se reconstruiu.
Alexandre Magno foi a maior de todas as referências de Bonaparte, até pelo forma como este imitou aquele ao preparar a campanha do Egipto, fazendo acompanhar os exércitos de sábios e da instrumentação científica da época. Falhou, porém, a conquista do Mundo e cingiu-se ao domínio da Europa (nas palavras de Patrick Rambaud, “quis ser Alexandre, mas contentou-se em ser Carlos Magno”).
Governou ambiguamente. Enquanto usava mão de ferro para suster os desmandos da Revolução, transpunha para os códigos legislativos os ideais revolucionários. Com base na vontade popular (aprovação por plebiscito), construiu um poder de natureza monárquica. Partindo da liberdade, buscou a submissão dos restantes. Perdeu-se, pois, na ambição da hegemonia francesa, obtida através de conquistas ou assegurando a submissão dos restantes. Como os imperadores e reis medievos, quis repartir a Europa por vassalos (assim foi, por exemplo, com a colocação do irmão José Bonaparte no trono de Espanha; assim seria em Portugal, se os termos de Fontainbleu tivessem sido aplicados). Só os ingleses tinham capacidade de conter essa ambição. Contiveram-na.
Jornal de Notícias, 11 de Dezembro de 2007
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