A sacralização das crenças é uma forma de totalitarismo que serve de pretexto para amordaçar convicções diferentes e impor a lei do mais forte. Nos países onde funciona a democracia há quem tente os constrangimentos sociais para limitar a liberdade.
A recente polémica em torno do último livro de José Saramago deve fazer-nos reflectir sobre a fé e a liberdade. Que a um crente seja proibido interrogar-se sobre a crença que abraçou é um direito da sua Igreja, mas cabe ao Estado laico garantir-lhe a liberdade de mudar ou, simplesmente, de a abandonar. É aqui que reside a diferença entre teocracias e democracias. A apostasia, crime gravíssimo nos estados confessionais, é um direito inalienável nos estados laicos.
Qualquer livro sagrado é considerado como tal por alguns e, seguramente, desprezado por outros, assistindo a todos o mesmo direito. Se não se contestassem as crenças ainda hoje o Sol continuaria a girar à volta da Terra. Se não pudéssemos discutir a Tora, a Bíblia ou o Corão com que direito alguém condenaria o Mein Kampf ou o Manifesto Comunista? É tão legítimo combater uma religião, ou todas, como combater qualquer sistema político. As crenças podem e devem ser combatidas, os crentes é que merecem ser respeitados.
Entendo, pois, que Saramago tem o direito de escrever tudo o que escreve (e quanto lhe agradeço) e de dizer tudo o que diz tal como as Igrejas têm igual direito de contradizer o que diz e escreve Saramago. Passo ao lado dos dislates de um infeliz eurodeputado que pretende definir o critério de nacionalidade em função das suas crenças. Há sempre um clone de Sousa Lara, ensandecido, à espera de cinco minutos de glória.
A Igreja católica teve logo a solidariedade de outras, menos recomendáveis, e tem todo o direito de não gostar de Saramago e de combater as suas ideias, não tem é o direito à imunidade das tolices que prega e ao monopólio da interpretação do Antigo Testamento. Se hoje considera literatura esse livro violento da Idade do Bronze, só a partir do século XIX é que a exegese católica o começou a considerar como tal. E a liberdade religiosa só foi admitida pelo Concílio Vaticano II.
Os judeus das trancinhas que pretendem derrubar o Muro das lamentações à cabeçada e anexar a Palestina, assim como os cristãos evangélicos, que tiveram um presidente dos EUA que falava com deus e invadiu o Iraque, exigem a leitura literal para o Antigo Testamento.
Alguns pretensos ateus, sôfregos de bênçãos dos leitores, afirmam que a Tora, a Bíblia e o Corão só devem ser avaliados pelos descrentes como obras literárias, à semelhança da Ilíada, Odisseia ou das obras de Shakespeare. Acontece que nenhum destes livros serviu para justificar cruzadas, guerras, tribunais do Santo Ofício ou códigos de conduta.
Não se conhece uma só morte provocada por um fanático para convencer um céptico do dogma do cavalo de Tróia.
Ponte Europa / Sorumbático (C.Barroco Esperança)
Completamente de acordo!até acho que a religião católica deve estar agradecida a Saramago, nunca como agora ,houve tanta gente a estudar a Bíblia! Mas...será que a igreja católica quer mesmo isso, quer que os cristãos estudem a Bíblia?
ResponderEliminarNão será sintomático o Papa querer que as celebrações religiosas se façam em latim?
E eu sou católica!
Desculpe invadir assim o seu espaço.
Costumo vir aqui e gosto do que vejo.
Saudações de uma madeirense no exílio...
Ora viva! Seja sempre bem aparecida e deixe o seu comentário, a favor ou não - é assim que se cresce! Também eu sou católica ainda que pouco romana...É óptimo que haja neste País sisudo Eças, Camilos, Bocages, Saramagos:acordam o povo, despertam-no para os problemas,revelam-se os puritanos e, os que têm mesmo opinião não hesitam em partilha-la.Afinal somos duas exiladas...Abraço
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