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sábado, outubro 31, 2009

Seria injusto não haver Deus

por Anselmo Borges - DN, hoje 

As nossas sociedades científico-técnicas, comandadas pe-la razão instrumental, pelo progresso, o êxito e o consumo, hedonistas, nas quais a fé se obnubilou, são as primeiras da História a fazer da morte tabu. Este tabu, acompanhado da perda da fé no Além e da eternidade, é essencial para o entendimento do que se passa. Porque já não há eternidade, o tempo não faz texto, ficando reduzido a instantes que se devoram. Como pode então ainda haver valores e futuro num tempo que se dissolve na voragem de instantes?

De qualquer modo, estas nossas sociedades permitem a visita dos mortos dois dias por ano: 1 e 2 de Novembro. Os cemitérios enchem-se e, de forma mais ou menos explícita e funda, num silêncio ao mesmo tempo vazio e opaco, plúmbeo, há o confronto com a ultimidade, aí onde verdadeiramente se é Homem. Afinal, qual é o sentido da existência e de tudo? O que vale verdadeiramente? M. Heidegger chamou a atenção para isso: a diferença entre a existência autêntica e a existência inautêntica dá-se nesse confronto. Se tudo decorre na banalidade rasante e na gritaria oca, a explicação está aqui: no último tabu.
Para onde vão os mortos? Para o Silêncio. O mistério da morte é esse: dizemos que partiram, mas o que abala é não deixarem endereço. Na morte, a evidência é o cadáver. Mas quem se contenta com o cadáver? Por isso, a morte é o impensável que obriga a pensar e, enquanto formos mortais, havemos de perguntar por Deus.
Deus não é "objecto" de ciência, mas uma esperança, sobretudo quando se pensa nas vítimas inocentes. Como escreveu o agnóstico M. Horkheimer, um dos fundadores da Escola Crítica de Frankfurt, "se tivesse de descrever a razão por que Kant se manteve na fé em Deus, não saberia encontrar melhor referência do que aquele passo de Victor Hugo: uma anciã caminha pela rua. Ela cuidou dos filhos e colheu ingratidão; trabalhou e vive na miséria; amou e vive na solidão. E no entanto está longe de qualquer ódio e rancor, e ajuda onde pode... Alguém vê-a caminhar e diz: Ça doit avoir un lendemain!... Porque não foram capazes de pensar que a injustiça que atravessa a História seja definitiva, Voltaire e Kant postularam Deus - não para eles mesmos".
A curto, a médio, a longo prazo, todos foram estando mortos. A curto, a médio, a longo prazo, todos iremos, todos irão estando mortos, e lá, no final, só há uma alternativa.
Claude Lévi-Strauss conclui assim o seu L'homme nu: "Ao homem incumbe viver e lutar, pensar e crer, sobretudo conservar a coragem, sem que nunca o abandone a certeza adversa de que outrora não estava presente e que não estará sempre presente sobre a Terra e que, com o seu desaparecimento inelutável da superfície de um planeta também ele votado à morte, os seus trabalhos, os seus sofrimentos, as suas alegrias, as suas esperanças e as suas obras se tornarão como se não tivessem existido, não havendo já nenhuma consciência para preservar ao menos a lembrança desses movimentos efémeros, excepto, através de alguns traços rapidamente apagados de um mundo de rosto impassível, a constatação anulada de que existiram, isto é, nada".
A Bíblia, no último livro, Apocalipse, conclui assim: "Vi então um novo céu e uma nova terra. E vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém. E ouvi uma voz potente que vinha do trono: 'Esta é a morada de Deus entre os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo e o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor. Porque as primeiras coisas passaram.'"
No meio da perplexidade, fico com Kant: "A balança do entendimento não é completamente imparcial, e um braço da mesma com o dístico 'esperança do futuro' tem uma vantagem mecânica, que faz com que mesmo razões leves, que caem no seu respectivo prato, levantem o outro braço, que contém especulações em si de maior peso. Esta é a única incorrecção que eu não posso eliminar e que eu na realidade não quero abandonar."

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