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sexta-feira, abril 23, 2010

Germano


Não há passividade carente na dança de um canavial. Há harmonia e a subtileza das leis físicas ordenadas pelo "nordeste". Bailado estremecido e solto num som sempre seco que, interrogado na noite, nem se sabe se é chuva se vento. 
Todas as brisas da natureza têm um cúmplice carinho, nesse vai vem, um tombar parecido ,calmo, ingénuo e sereno.
Germano apreciava a sua terra, vivia e comia dela. De manhã em manhã era por ela que persistia e as suas grandes e ásperas mãos eram meigas no pegar da foice ou da enxada.
Não conhecia outro vocabulário, não sonhava outra vida. A terra, só a terra, era a perfeita felicidade do homem e tê-la, desbravá-la obrigando-a a produzir, possuí-la como bem de raiz, era a cabal missão para que nascera.
A escola ficara-se a meio pois nem as ameaças do pai de Germano conseguiam convencer os professores. Nascido no meio rural, habituado ao servilismo escravo de quem obedece porque nada mais sabe fazer, Germano cresceu menino de trabalho enrijecendo músculos, criando forças impensáveis à sua estatura entroncada e baixa.
Os olhos cresceram-lhe ávidos do saber que a escola negou, escuros como terra arroteada, salientes como bolbos, penetrantes como sol de Agosto sem vergonha, escaldantes.
A terra sorveu-lhe os primeiros acordes machos e ele agradecia-lhe os silêncios deleitado nos cheiros fortes de húmus, na capacidade de quem rasga sulcos e amorosamente os tapa na promessa da fertilidade.
O gado era a outra paixão de Germano. 
Tinha prazer nos seus olhares - quase idênticos - de compreensão, à comida e cama seca, a uma leve palmada nos quartos cheios, no grito animal, à ração verde e fresca.
O Domingo, dia sagrado e de descanso, Germano gostava de ir à missa, apreciava o colorido das vestes, do entrar pachorrento na igreja, dos cânticos semi- berrados e do acotovelar que a enchente do templo obrigava. A saída era atenta e demorada, mesmo se chovesse, pois a diversidade de pessoas e cheiros só semanalmente acontecia.
E foi num Domingo, gozando a frouxidão do povo, que Germano a viu. 
Uma qualquer alquimia se gerou na seiva morena do corpo moreno. 
Foi penoso e calado o regresso a casa e nem os afagos do fiel amigo o alegraram.
Na terra a enxada era o encosto imóvel que o olhar distante acentuava. A semana jamais passaria e Germano arrastava as botas pesadas, pensando esmagar o tempo.
    Mas novo Domingo chegou e, com ele, o homem novo bem lavado e bem vestido  ansiosa e piedosamente se moveu.
Maiores, os olhos, dissecavam todos os bancos de mulheraça na fé firme de nova aparição. 
Ultrapassando-se a si próprio saiu a meio do ofício, invocando qualquer premente necessidade. 
Quando reentrou subiu as escadas do coro, vitorioso da sua inteligência e visão. Instalado olhou firme a imagem sagrada que, em frente, também o olhava, invocou pequeno murmúrio de oração e, enfim, reconheceu que amava! 
Não deu pelo desenrolar da cerimónia amando, em silêncio, aquela límpida claridade dentro de si. 
O "Amém" uníssono despertou-o. Apurou os sentidos e lutou para o lugar de varandim que outros abandonavam.
Viu-a. 
Sorridente, apoiada em abandono a mão no braço másculo de quem também lhe sorria. As alianças brilharam nas mãos entrelaçadas num reflexo que cegou Germano.
Agora, sentado e ausente no muro da estrada, anseia que o Domingo passe.
    As canas, ao longe, estremecidas e sussurrantes, deixam entrever o seu único amor -a  terra. 

Maria Teresa S. T. Góis 

Imagem: "o lavrador de café" de Cândido Portinari

Este texto foi já publicado, por ocasião da Feira do Livro, na revista cultural  "Margem", da Câmara Municipal do Funchal

1 comentário:

  1. José Luís Rodrigues23 de abril de 2010 às 19:27

    Muito bonito. Fez-me regressar à terra e lembrar de imensos homens que conheci e que fortaleciam a vida na raiz enfiada na terra. Obrigado por este conto maravilhoso.

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