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quinta-feira, abril 22, 2010

Uma igreja capaz de fazer sorrir a Virgem

por Nicholas Kristof,jornal i, hoje
Há dias ouvi uma piada sobre uma alma piedosa que morre, vai para o Céu e é recebida em audiência pela Virgem Maria. O visitante pergunta a Maria por que razão, apesar de todas as suas graças, aparece sempre nos quadros um pouco triste, um pouco melancólica. Estará tudo bem? 
Maria tranquiliza o visitante: "Sim, está tudo óptimo. Não há problema nenhum. Só que... bem, só que nós sempre quisemos ter uma filha."
Essa história vem-nos ao espírito na altura em que o Vaticano se debate com as consequências de uma perspectiva patriarcal pré-moderna: escândalo, encobrimento e a pior autodefesa desde Watergate. É o que acontece aos clubes de velhos amigalhaços. 
Não era inevitável que a Igreja Católica se deixasse enquistar num regime de domínio dos homens, celibato e rigidez hierárquica. O próprio Jesus preocupava-se mais com os necessitados que com o dogma e esforçou-se activamente por conseguir a adesão das mulheres e por tratá-las com respeito. 
A Igreja do século I era inclusiva e democrática, tendo mesmo uma ala e textos protofeministas. O Evangelho de S. Filipe, um texto gnóstico do século III, declara, referindo-se a Maria Madalena: "Ela é quem o Salvador amava acima de todos os discípulos." Do mesmo modo, o Evangelho de Maria (dos princípios do século II) indicia que Jesus confiou a Maria Madalena a tarefa de instruir os discípulos nos seus ensinamentos religiosos.
S. Paulo refere-se, na Epístola aos Romanos (cap. 16), a uma mulher do século I, chamada Júnia, como preeminente entre os primeiros apóstolos, bem como a outra, chamada Febe, que foi diácona. A apóstola Júnia tornou-se cristã antes de S. Paulo (alguns tradutores machistas têm escrito o nome dela na versão masculina, sem qualquer base científica).
Todavia, nos séculos que se seguiram, a Igreja viria a adoptar atitudes fortemente patriarcais, mostrando-se ao mesmo tempo cada vez mais incomodada com a sexualidade. Essa mudança pode ter-se dado com a passagem das igrejas caseiras, onde as mulheres eram naturalmente bem aceites, para as assembleias mais públicas. 
O resultado foi os textos protofeministas não terem sido incluídos na Bíblia quando esta foi compilada (ficaram em grande parte perdidos até aos tempos modernos). Tertuliano, um dirigente dos primórdios do cristianismo, apontou as mulheres como "portas do Demónio" e um relato coevo revela que o grande Orígenes de Alexandria levou a religiosidade ao extremo de se castrar. 
A Igreja Católica ainda parece estar presa, nos dias de hoje, a esse atavismo. A mesmíssima fé, tão pioneira no seu dealbar que teve Júnia como apóstola no século I, não pode hoje em dia ter uma mulher nem como simples pároca. As diáconas, aceites durante séculos, estão hoje proscritas.
O "clube de velhos amigalhaços" do Vaticano ficou tão centrado em si mesmo como qualquer outro, incluindo o Lehman Brothers, com resultados semelhantes. E é por isso que o Vaticano está hoje a soçobrar. 
Mas há mais. Nas minhas viagens pelo mundo deparo-me com duas Igrejas Católicas. Uma é a da hierarquia rígida, exclusivamente masculina, do Vaticano, que parece ter perdido todo o contacto com a realidade quando proíbe os preservativos, mesmo entre casais em que um dos cônjuges é seropositivo. Para mim, pelo menos, esta Igreja - obcecada com o dogma e com regras e que perdeu o norte da justiça social - é um eco moderno dos fariseus que Jesus criticou. 
Mas há outra Igreja Católica, que admiro profundamente. É a Igreja Católica das bases, que faz mais pelo mundo do que se imagina. É a Igreja que apoia organizações de assistência como o Catholic Relief Services e a Caritas, salvando vidas todos os dias e gerindo escolas magníficas que proporcionam a muitas crianças necessitadas uma escada para saírem da pobreza. É a Igreja das freiras e dos padres que no Congo laboram no anonimato para alimentar e educar crianças. É a Igreja do padre brasileiro que combate a sida e que me disse que, se fosse Papa, instalava uma fábrica de preservativos no Vaticano para salvar vidas.
É a Igreja das irmãs Maryknoll, na América Central, e das irmãs Cabrini, em África. Existe um estereótipo que pinta as freiras como mulheres tradicionalistas empedernidas, ao estilo vitoriano. Verifiquei que assim não é ao agarrar-me com unhas e dentes ao meu assento, no interior de um jipe guiado por uma freira dos EUA que percorria picadas e vencia linhas de água na Suazilândia para visitar órfãos da sida. Depois de vários encontros desse tipo, passei a acreditar que as pessoas mais fixes que há no mundo de hoje podem bem ser freiras. Por isso, quando lemos notícias dos escândalos, devemos recordar que o Vaticano não é o mesmo que a Igreja Católica. Os vulgares leprosos, prostitutas e habitantes de bairros de lata podem nunca chegar a ver um cardeal, mas todos os dias se deparam com uma Igreja Católica verdadeiramente nobre, corporizada em padres, freiras e voluntários laicos que labutam para marcar a diferença. Já está na altura de o Vaticano se inspirar nessa vertente sublime - eu diria mesmo divina - da Igreja Católica, seguindo o exemplo desses obreiros da Igreja cuja magnificência não está no trajo que usam mas no altruísmo. Bastam, só por si, para fazer sorrir a Virgem Maria.

4 comentários:

  1. José Luís Rodrigues22 de abril de 2010 às 09:17

    Extraordinário texto. Muito obrigado por partilhá-lo connosco. Gostei muito, porque centra a reflexão e o debate nas questões importantes. Esta igreja sim é a de Jesus Cristo, a do Seu Evangelho, porque sempre inclusiva de todos e de modo especial, das mulheres e dos pobres, dos marginais que ninguém quer saber. Não era melhor a igraja vaticana estar a reflectir sobre isto em vez de se gastar na defesa do Papa e dos criminosos pedófilos que a se refugiam nas mordomias da cerrada hierarquia (os amigalhaços)? - Grande expressão para qualificar a hierarquia, porque é disso que se trata mesmo a hierarquia da igreja hoje reduziu-se a isso mesmo, um grupo de amigalhaços que protege amigalhaços). Bem haja, por esta oração da manhã que nos serviu.

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  2. Olha Tuka
    Não gostei muito quando o senhor começa a falar das mulheres à Igreja. Não me considero "fundamentalista", mas sou muito conservadora.
    Mas adorei lêr até ao fim, e lá está : as mulheres não precisam de ir para Padres !!! Podem exactamente continuar a ir para freiras e fazer um trabalho melhor ainda, do que se forem para uma igreja dizer missas e cobrar missas de defuntos...
    O que é pena, isso sim, é o Vaticano continuar a enriquecer e a manter umas ideias tão anti-actualidade.

    Uma beijoca

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  3. Bé, tu não és mto conservadora és demasiado conservadora.Sabes o que me lembrei quando li o teu comentário? Estás na linha do que hoje mais se usa: as mulheres são para varrer, enfeitar as igrejas, dar catequese, fazer leituras....Seriam nobres todas as actividades se fossem olhadas como nobres pelos "machistas" ainda existentes. Agora que na IGREJA são as mulheres que melhor desempenham o trabalho de acudir à doença e à pobreza, de instruir, isso eu não tenho dúvidas! E nos sítios mais pobres, mais recônditos.

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  4. José Ângelo Gonçalves de Paulos22 de abril de 2010 às 22:01

    Querida Amiga Tukakubana, eis-nos numa igreja que só sabe conservar. Jesus Cristo fundou o cristianismo para renovar o judaísmo, que estava decadente, só mandava prender e matar. Jesus veio perdoar e anunciar um Deus do AMOR e não o vingativo, cruel como o do AT. Dar a face ao inimigo. Não há dúvida que é difícil e, dar, ainda por cima, a outra. Isto é uma Revolução , um acto de Criatividade, de Amor perante os "alguéns, que há por aí, e que, apenas, só sabem castigar, intimidar, intimar , bater, prender, tirar o pão (como fez o ditador Salazar)e matar. Os algozes são reféns do egocentrismo.Matam-se a si próprios. E todos eles, de todas idades históricas desapareceram. Só aparecem para a escuridão. Jesus, o Deus do Amor, 2010 anos depois é falado por todos: crentes e não crentes. "É eterno o seu AMOR". Viva o"25 de Abril" pq tb foi a Revolução do Amor. Criativa!

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