translúcido como espada:
afasta do sépalo afiado
a corola carmesim que ainda treme,
como na alma o espírito,
o sangue da veia.
O inverno, oculta haste
que balouçou os desejos, assombrou as mortais hesitações,
decepada sem um grito;
a velhice interior decepa
da terrível vida.
Páscoa da incorrupção!
No vento de primavera
a antiga igreja indivisa
anuncia aos mortos que indivisa é a vida:
sobre as lápides dos túmulos
pousa os sépalos que ainda tremem
e no centro, no plexo, no coração,
lá onde está sepultado o Sol,
lá onde está sepultado o Dom,
o pequeno ovo carmesim do perene retorno,
do humilde, irreconhecível
transfigurado retorno.
Páscoa que libertas todas as culpas!
Paradoxal deserto
de um cemitério metropolitano
entre suavíssimas asas
de andorinhas e véus: quinto tom,
gritos de boiardos sem postura, a espada exposta
na celeste Cidade tomada,
que se cruza e enrola, oitavo tom,
- como à vivificante, venerável Cruz
do Arqueiro a rosa que ainda treme -
naquele tão terno lamento fúnebre:
Páscoa, memória eterna!
Patética, patrícia
morte da morte metropolitana
testemunhada por escassas e imóveis bonecas
da Corte asiática: carmesim, prata e ouro.
Pálpebras escavadas,
pálpebras afiadas,
olhares fixos, parados, empedrados
sobre os túmulos de cada lugar, cada memória, cada estirpe,
cada psique que morre.
Lenços enxugam furtivos
os cantos da boca que rega como sangue
o divino grito, as raízes carbonizadas da água
inexaurível da notícia tremenda:
Páscoa, memória eterna!
(de Poemas Dispersos, in O Passo do Adeus, tradução de José Tolentino Mendonça, Assírio & Alvim, 2002 – documenta poetica)
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