[google6450332ca0b2b225.html

quinta-feira, abril 01, 2010

"Semana Santa" - Alexandre Herculano

"Der Gedanke Gott weckt einen
fürchterlichen Nachhar auf. Sein Name
heisst Richter.

SCHILLER

Tíbio o sol entre as nuvens do ocidente,
Já lá se inclina ao mar. Grave e solene
Vai a hora da tarde! O oeste passa
Mudo nos troncos da alameda antiga,
Que à voz da Primavera os gomos brota:
O oeste passa mudo, e cruza o átrio
Pontiagudo do templo, edificado
Por mãos duras de avós, em monumento
De uma herança de fé que nos legaram,
A nós seus netos, homens de alto esforço,
Que nos rimos da herança, e que insultamos
A Cruz e o templo e a crença de outras eras;
Nós, homens fortes, servos de tiranos,
Que sabemos tão bem rojar seus ferros
Sem nos queixar, menosprezando a Pátria
E a liberdade, e o combater por ela.
Eu não! – eu rujo escravo; eu creio e espero
No Deus das almas generosas, puras,
E os déspotas maldigo. Entendimento
Bronco, lançado em século fundido
Na servidão de gozo ataviada,
Creio que Deus é Deus e os homens livres!

Oh, sim! – rude amador de antigos sonhos,
Irei pedir aos túmulos dos velhos
Religioso entusiasmo; e canto novo
Hei-de tecer, que os homens do futuro
Entenderão; um canto escarnecido
Pelos filhos dest' época mesquinha.
Em que vim peregrino a ver o mundo,
E chegar a meu termo, e reclinar-me
À branda sombra de cipreste amigo.

Passa o vento os do pórtico da igreja
Esculpidos umbrais: correndo as naves
Sussurrou, sussurrou entre as colunas
De gótico lavor: no órgão do coro
Veio, enfim, murmurar e esvaecer-se.

Mas porque sou o vento? Está deserto,
Silencioso ainda o sacro templo:
Nenhuma voz humana ainda recorda
Os hinos do Senhor. A natureza
Foi a primeira em celebrar seu nome
Neste dia de luto e de saudade!
Trevas da quarta-feira, eu vos saúdo!
Negras paredes, mudos monumentos
De todas essas orações de mágoa,
De gratidão, de susto ou de esperança.
Depositadas ante vós nos dias
De fervorosa crença, a vós que enluta
A solidão e o dó, venho eu saudar-vos.
A loucura da Cruz não morreu toda
Após dezoito séculos! Quem chore
Do sofrimento o Herói existe ainda.
Eu chorarei – que as lágrimas são dó homem –
Pelo Amigo do povo, assassinado
Por tiranos, e hipócritas, e turbas
Envilecidas, bárbaras, e servas.

Tu, Anjo do Senhor, que acendes o estro;
Que no espaço entre o abismo e os céus vagueias,
Donde mergulhas no oceano a vista;
Tu que do trovador à mente arrojas
Quanto há nos céus esperançoso e belo,
Quanto há no abismo tenebroso e triste,
Quanto há nos mares majestoso e vago,
Hoje te invoco! – oh, vem! –, lança em minha alma
A harmonia celeste e o fogo e o génio,
Que dêem vida e vigor a um carme pio.

A noite escura desce: o Sol de todo
Nos mares se atufou. A luz dos mortos,
Dos brandões o clarão, fulgura ao longe
No cruzeiro somente e em volta da ara:
E pelas naves começou ruído
De compassado andar. Fiéis acodem
À morada de Deus, a ouvir queixumes
Do vate de Sião. Em breve os monges,
Suspirosas canções aos Céus erguendo,
Sua voz unirão à voz desse órgão,
E os sons e os ecos reboarão no templo.
Mudo o coro depois, neste recinto
Dentro em bem pouco reinará silêncio,
O silêncio dos túmulos, e as trevas
Cobrirão por esta área a luz escassa
Despedida das lâmpadas. que pendem
Ante os altares, bruxuleando frouxas.
Imagem da existência! Enquanto passam
Os dias infantis, as paixões tuas,
Homem, qual então és, são débeis todas.
Cresceste: ei-las torrente, em cujo dorso
Sobrenadam a dor e o pranto e o longo
Gemido do remorso, a qual lançar-se
Vai com rouco estridor no antro da morte,
Lá, onde é tudo horror, silêncio, noite.
Da vida tua instantes florescentes
Foram dois, e não mais: as cãs e rugas,
Logo, rebate de teu fim te deram.
Tu foste apenas som, que, o ar ferindo,
Murmurou, esqueceu, passou no espaço.
E a casa do Senhor ergueu-se. O ferro
Cortou a penedia; e o canto enorme
Polido alveja ali no espesso pano
Do muro colossal, que era após era,
Como onda e onda ao desdobrar na areia,
Viu vir chegando e adormecer-lhe ao lado.
O ulmo e o choupo no cair rangeram
Sob o machado: a trave afeiçoou-se;
Lá no cimo pousou: restruge ao longe
De martelos fragor, e eis ergue o templo,
Por entre as nuvens, bronzeadas grimpas.
Homem, do que és capaz! Tu, cujo alento
Se esvai, como da cerva a leve pista
No pó se apaga ao respirar da tarde,
Do seio dessa terra em que és estranho,
Sair fazes as moles seculares,
Que por ti, mono, falem; dás na ideia
Eterna duração às obras tuas.
Tua alma é imortal, e a prova a deste!


Anoiteceu. Nos claustros ressoando
As pisadas dos monges ouço: eis entram;
Eis se curvaram paru o chão, beijando
O pavimento, a pedra. Oh, sim, beijai-a!
Igual vos cobrirá a cinza um dia,
Talvez em breve – e a mim. Consolo ao morto
É a pedra do túmulo. Sê-lo-ia
Mais, se do justo só a herança fora;
Mas também ao malvado é dada a campa.
E o criminoso dormirá quieto
Entre os bons soterrado? Oh, não! Enquanto
No templo ondeiam silenciosas turbas,
Exultarão do abismo os moradores,
Vendo o hipócrita vil, mais ímpio que eles,
Que escarnece do Eterno, e a si se engana;
Vendo o que julga que orações apagam
Vícios é crimes. e o motejo e o riso
Dado em resposta às lágrimas do pobre;
Vendo os que nunca ao infeliz disseram
De consolo palavra ou de esperança.
Sim: malvados também hão-de pisar-lhes
Os frios restos que separa a terra,
Um punhado de terra, a qual os ossos
Destes há-de cobrir em tempo breve,
Como cobriu os seus; qual vai sumindo
No segredo da campa a humana raça.

Eis que a turba rareia. Ermam bem poucos
Do templo na amplidão: só lá no escuro
De afumada capela o justo as preces
Ergue pio ao Senhor, as preces puras
De um coração que espera, e não mentidas
De lábios de impostor, que engana os homens
Com seu meneio hipócrita, calando
Na alma lodosa da blasfémia o grito.
Então exultarão os bons, e o ímpio,
Que passou, tremerá. Enfim, de vivos,
Da voz, do respirar o som confuso
Vem confundir-se no ferver das praças,
E pela galilé só ruge o vento.
Em trevas não, ficou silenciosas
O sagrado recinto: os candeeiros,
No gelado ambiente ardendo a custo,
Espalham débeis raios, que reflectem
Das pedras pela alvura; o negro mocho,
Companheiro do morto, hórrido pio
Solta lã da cornija: pelas fendas
Dos sepulcros desliza fumo espesso;
Ondeia pela nave, e esvai-se. Longo
Suspirar não se ouviu? Olhai!, lá se erguem,
Sacudindo o sudário, em peso os morros!
Mortos, quem vos chamou? O som da tuba
Ainda do Josafat não fere os vales.
Dormi, dormi: deixai passar as eras...

Mas foi uma visão: foi como cena
D' imaginar febril. Criou-se, acaso
Do poeta na mente, ou desvendou-lhe
A mão de Deus o íntimo ver da alma,
Que devassa a existência misteriosa
Do mundo dos espíritos? Quem sabe?
Dos vivos já deserta, a igreja torva
Repovoou-se, para mim ao menos,
Dos extintos, que ao pé das santas aras
Leito comum na sonolência extrema
Buscaram. O terror, que arreda o homem
Do limiar do tempo às horas mortas,
Não vem de crença vã. Se fulgem astros,
Se a luz da Lua estira a sombra eterna
Da cruz gigante (que campeia erguida
No vértice do tímpano, ou no cimo
Do coruchéu do campanário) ao longo
Dos inclinados tectos, afastai-vos!
Afastai-vos daqui, onde se passam
A meia-noite insólitos mistérios;
Daqui, onde desperta a voz do arcanjo
Os dormentes da morte; onde reúne
O que foi forte e o que foi fraco, o pobre
E o opulento, o orgulhoso e o humilde,
O bom e o mau, o ignorante e o sábio,
Quantos, enfim, depositar vieram
!unto do altar o que era seu no mundo,
Um corpo nu, e corrompido e inerte.

E seguia a visão. Cria ainda achar-me,
Alta noite, na igreja solitária
Entre os mortos, que, erectos sobre as campas,
Eram á pouco um fumo que ondeava
Pelas fisgas do vasto pavimento.
Olhei. Do erguido tecto o pano espesso
Rareava; rareava-me ante os olhos,
Como ténue cendal; mais ténue ainda,
Como o vapor de Outono em quarto d'alva,
Que se libra no espaço antes que desça
A consolar as plantas conglobado
Em matutino orvalho. O firmamento
Era profundo e amplo. Envolto em glória,
Sobre vagas de nuvens, rodeado
Das legiões do Céu, o Ancião dos dias,
O Santo, o Deus descia. Ao sumo aceno
Parava o tempo, a imensidade, a vida
Dos mundos a escutar. Era esta a hora
Do julgamento desses que se alçavam,
À voz de cima, sobre as sepulturas?
(...)

Alexandre Herculano


Sem comentários:

Enviar um comentário